Já havia lido um livro do Carpentier, Literatura e consciência política na América Latina, há algum tempo, e confesso que o livro me agradou muito, era uma edição bem velhinha já, da editora Graal, e continha fragmentos de um discurso, alguns ensaios e escritos diversos do autor acerca das artes na América Latina, com especial ênfase na Literatura e na Música, já que ele foi um grande estudioso e pesquisador desses dois campos.

Essa resenha, porém, é sobre outro livro de sua autoria, O reino deste mundo, e se comecei a resenha falando daquele outro livro é porque deixo registrada minha recomendação desde já: Literatura e consciência política na América Latina é uma ótima indicação para compreender não só os escritos de Carpentier mas também de boa parte dos escritores do chamado ‘boom’ da Literatura Latino-Americana.

O reino deste mundo conta a história de um negro, Ti Noel, cuja vida se insere dentro de grandes movimentos históricos do Haiti. Ti Noel é um escravo que vive sob a opressão do regime de dominação colonial francês e observa elementos diversos da realidade que lhe permitem fazer uma leitura bem diferente da dominação bem como das formas de resistir a ela, comumente revestidas do maravilhoso característico da obra.

Ti Noel é amigo de Mackandal, figura muito representativa do processo de luta pela independência do Haiti, com quem discute o dia-a-dia da opressão e como seria bom um mundo diferente, onde fossem livres. Mackandal, após sofrer um acidente durante o trabalho, se retira para regiões escondidas do Haiti, próximas, porém, a fazenda onde ele e Ti Noel habitam, e passa a realizar rituais de magia, mandingas, vudu e outras práticas ritualísticas que lhe permitem assumir forças sobrenaturais.

Carpentier consegue trazer a complexa e rica diversidade cultural e hibridização que se entrechoca quando do processo de colonização e introdução dos escravos no Haiti (já que se reúnem populações nativas, colonizadores franceses, escravos africanos etc.) para o campo da Literatura e usá-la para discutir desdobramentos históricos no chamado “realismo mágico” ou “realismo maravilhoso”. O livro citado no início dessa resenha traz uma citação de Carpentier em que ele diz que há “um caudal de mitologia na América Latina” que faz com que essa literatura aflore e ganhe contornos épicos nas lutas históricas dos povos que aqui habitam.

Além disso, no prefácio de O reino deste mundo, Carpentier diz que a magia e o “realismo maravilhoso” ajudam a explicar o processo de dominação e de lutas que ocorrem na América Latina, desde os tempos da colonização até as lutas que aconteciam no contexto histórico em que o autor viveu. Essa afirmação, embora envolva a América Latina em um exotismo perigoso, é significativa por deixar subjacente que sua história não é tão conhecida, o que acaba por ensejar interpretações míticas, que constroem estereótipos latino-americanos diversos mundo afora.

Mackandal se torna no livro uma figura lendária (como, aliás, a memória que foi construída em torno dele), que atua através de forças mágicas misteriosas, transpondo sua consciência a outros animais, envenenando plantas e pastagens, provocando o horror nos dominadores franceses. Nesse ínterim é que a luta pela independência é levada a cabo, entrelaçando as intenções de abolição da escravidão e de libertação do jugo francês, ou seja, o “realismo maravilhoso” condensa no campo do mítico ou mágico mas que uma significação ficcional, ele reveste as práticas históricas, dotando-as de significação diversa.

O processo histórico de luta contra as metrópoles não ocorreu só no Haiti, já que se estendeu para outros países e territórios da América Latina; mas as lutas dos escravos haitianos influenciaram profundamente as demais lutas pela libertação (colonial e da escravidão) e inclusive a própria forma da administração metropolitana. Não houve influência somente da situação política e das próprias condições sub-humanas a que os escravos eram submetidos, mas os próprios ideais da Revolução Francesa de 1789, que se disseminavam cada vez mais pelas colônias do “Novo Mundo”.

Carpentier segue o curso dos acontecimentos e “desembarca” no Haiti pós-Independência, onde a República passou a ser governada por Henri Christophe, que se torna um personagem no livro e traça os planos para a construção de Cidadela Laferrière, um complexo fortificado de contornos que lembram os das obras de Piranesi pela complexidade, exuberância e faraônica magnitude repleta de detalhes, circunvoluções e pormenores de toda a sorte.

Henri Christophe é mostrado como um imperador impetuoso, de punho de ferro, que usou de seu poder para erigir monumentais torres, fortes, castelos, habitações e construções diversas, usando os ex-escravos como escravos novamente, porém a serviço de um novo poder. As palavras de Carpentier para descrever a vida e o clima existente dentro das muralhas de Laferrière é aterrador: há sacrifícios animais para ‘fechar’ a cidadela da interferência, costumes bizarros e um modo de vida pautada no multiforme panteão de práticas religiosas e rituais que compõe o mosaico latino-americano.

Mesclando fantasia e realidade, e utilizando-se da pluralidade de culturas, modos de vida, lutas, anseios revoltosos e toda a complexidade que moldou a América Latina, Carpentier construiu um romance forte e emblemático, que discorre não somente sobre a experiência de luta dos escravos do Haiti, mas em certa medida da América Latina como um todo, ainda mais tendo o posicionamento que ele teve perante a Revolução Cubana nos conturbados meados do século XX.

Carpentier consegue mostrar como a experiência humana é diversa e complexa, e como existem fissuras riquíssimas por trás dos discursos oficiais ou tradicionais na História. O “reino desse mundo” se refere, a meu ver, ao fato de mesmo havendo a abolição da escravidão e independência, o sonhado Éden que era prenunciado não veio a se realizar, pois tratava-se de um governo humano, desse mundo, sendo, portanto, imperfeito e marcado pelo constante enfrentamento de interesses, de exploração, abuso de poder e assim por diante.

O autor traz essa múltipla tessitura que compõe a América Latina para a partir dela revelar um passado que apesar de suas vestes místicas e metafísicas localizou sua atuação e suas lutas na realidade material e concreta, já que, segundo ele, há um quê de mitologia que permeia o passado dessas terras.