NONADA. Nós sabemos que você sabe de cor quem é LO-LI-TA. Sabemos que as famílias são felizes igualmente e infelizes a sua maneira; e você, provavelmente, conhece Gregor Samsa, aquele jovem que um dia acordou de sonhos inquietos e vislumbrou sua nova carapaça. Nós sabemos. Vocês sabem.

Por isso resolvemos juntar nossos queridos livros e extrair alguns inícios, pouco ou nunca citados, para que todos pudessem desfrutar. Não escolhemos um gênero, tampouco uma nacionalidade, para abordar, os que brotavam às nossas cabeças eram colocados em pauta.

E para não deixar ninguém perdido, colocamos também os links para suas respectivas resenhas.

 

Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

 

QUE STENDHAL confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco.

 

Arco-Íris da Gravidade, de Thomas Pynchon (tradução: Paulo Henriques Britto)

 

Um grito atravessa o céu. Já aconteceu antes, mas nada que se compare com esta vez.

É tarde demais. A Evacuação ainda continua, mas é tudo teatro. Não há luzes dentro dos vagões. Não há luz em lugar nenhum. Acima de sua cabeça elevam-se vigas velhas como uma rainha de aço, e em algum lugar lá no alto vidro que deixaria entrar a luz do dia. Mas é noite. Ele tem medo do modo como o vidro vai cair – em breve –, vai ser um espetáculo: o desabamento. Porém caindo na escuridão total, sem nenhum lampejo de luz, só um grande estrondo invísivel.

 

 

Extremamente alto e incrivelmente perto, de Jonathan Safran Foer (tradução: Daniel Galera)

E que tal uma chaleira? E se o gargalo abrisse e fechasse quando o vapor saísse, funcionando como uma boca que pudesse assobiar melodias bonitas, recitar Shakespeare ou simplesmente rachar o bico junto comigo? Eu poderia inventar uma chaleira que lesse com a voz do Pai para me fazer dormir, ou talvez um conjunto de chaleiras que cantasse o refrão de “Yellow Submarine”, que é uma música dos Beatles, que é uma banda que eu adoro porque a entomologia é uma das minhas raisons d’être, que é uma expressão em francês que eu conheço. Outra coisa boa seria se eu pudesse treinar meu ânus para falar quando eu peidasse. Se quisesse ser extremamente hilário, eu o treinaria para dizer “Não fui eu!”, toda vez que soltasse um peido incrivelmente forte. E se um dia eu soltasse um peido incrivelmente forte no Salão dos Espelhos, que fica em Versalhes, que fica nos arredores de Paris, que fica na França, obviamente, meu ânus diria “Ce n’étais pas moi!”.

 

Uma certa paz, de Amós Oz (tradução: Paul Geiser)

 

Um dia um homem se levanta e muda de um lugar para outro. O que ele deixa atrás de si fica para trás e só lhe vê as costas. No inverno de 1965, Ionatan Lifschitz resolveu abandonar sua mulher e o kibutz onde nascera e crescera. Decidiu sair e começar uma nova vida.

 

 

Coração tão branco, de Javier Marías (tradução: Eduardo Brandão)

 

Eu não quis saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e não fazia muito voltara de sua viagem de lua-de-mel, entrou no banheiro, pôs-se diante do espelho, abriu a blusa, tirou o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que estava na sala de almoço com parte da família e três convidados. Quando se ouviu a detonação, uns cinco minutos depois de a menina ter abandonado a mesa, o pai não se levantou de imediato, mas ficou alguns segundos paralisado com a boca cheia, sem se atrever a mastigar nem a engolir nem, menos ainda, a devolver o bocado ao prato; quando por fim se levantou e correu para o banheiro, os que o seguiram viram como, enquanto descobria o corpo ensanguentado da filha e levava as mãos à cabeça, ia passando o bocado de carne de um lado ao outro da boca, sem saber ainda o que fazer com ele. Levava o guardanapo na mão e não o soltou até que ao cabo de um instante reparou no sutiã atirado no bidê e aí cobriu-o com o pano que tinha à mão ou tinha na mão e que seus lábios haviam manchado, como se lhe envergonhasse mais a visão da peça íntima do que a do corpo caído e seminu com o qual a peça estivera em contato até há muito pouco tempo: o corpo sentado à mesa ou se afastando pelo corredor ou em pé. 1

 

Terra Sonâmbulade Mia Couto

 

Naquele lugar, a guerra tinha morto a estrada. Pelos caminhos só as hienas se arrastavam, focinhando entre cinzas e poeiras. A paisagem se mestiçara de tristezas nunca vistas, em cores que se pegavam à boca. Eram cores sujas, tão sujas que tinham perdido toda a leveza, esquecidas da ousadia de levantar asas pelo azul. Aqui, o céu se tornara impossível. E os viventes se acostumaram ao chão, em resignada aprendizagem da morte.

 

Se uma noite de inverno um viajante, de Italo Calvino (tradução: Nilson Moulin)

 

Você vai começar a ler o novo romance de Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno. Relaxe. Concentre-se. Afaste todos os outros pensamentos. Deixe que o mundo à sua volta se dissolva no indefinido. É melhor fechar a porta; do outro lado há sempre um televisor ligado. Diga logo aos outros ‘Não, não quero ver televisão!’. Se não ouvirem, levante a voz: ‘Estou lendo! Não quero ser perturbado!’. Com todo aquele barulho, talvez ainda não o tenham ouvido; fale mais alto, grite: ‘Estou começando a ler o novo romance de Italo Calvino!’. Se preferir, não diga nada; tomara que o deixem em paz.

 

A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares (tradução: Samuel Titan Jr.)

 

HOJE, nesta ilha, aconteceu um milagre. O verão adiantou-se. Coloquei a cama perto da piscina e fiquei tomando banho até muito tarde. Era impossível dormir. Dois ou três minutos fora bastavam para converter em suor a água que devia me proteger do calor inesperado. Pela madrugada, um gramofone despertou-me. Não pude voltar ao museu, a fim de buscar as coisas. Fugi pelos barrancos. Estou nos baixios do sul, entre plantas aquáticas, indignado por causa dos mosquitos, com o mar, ou córregos sujos, até a cintura vendo que antecipei absurdamente a minha fuga. Acho que essa gente não me veio procurar; talvez nem me tenham visto. Mas continuo o meu destino; estou desprovido de tudo, confinado ao lugar mais escasso, menos habitável da ilha; a pântanos, que o mar suprime uma vez por semana.

 

O senhor do lado esquerdo (Alberto Mussa)

 

Não é a geografia, não é a arquitetura, não são os heróis nem as batalhas, muito menos a crônica de costumes ou as imagens criadas pelas fantasias dos poetas: o que define uma cidade é a história dos seus crimes.

 

Bonsai, de Alejandro Zambra (tradução: Josely Viana Baptista)

 

No final ela morre e ele fica sozinho, ainda que na verdade ele já tivesse ficado sozinho muitos anos antes da morte dela, de Emilia.

 

 

  1. Continua no site da Companhia das Letras