Não sei quanto a vocês, mas costumo fazer alguns jogos mentais internos (se alguém souber o termo exato para isso, me informe). Do tipo de “se eu atravessar a faixa de pedestres antes do semáforo ficar vermelho para mim, eu mereço um sorvete”; ou de “se aquele livro estiver disponível na biblioteca, vou pegar emprestado e ler imediatamente”. No sebo, pensei em algo como “se encontrar o livro do Xerxenesky, eu compro”. BAM! Resultado: na quarta-feira passada, quase fiz um soneto em louvor ao estabelecimento, pelo pouco valor que tem dado à literatura contemporânea brasileira.

Sim, mas como você conheceu o autor? Esta é uma excelente pergunta: não dá pra simplesmente inventar um sobrenome desses: mesmo os jogos mentais mais bestas devem apresentar certa verossimilhança. Foi assim: um amigo tinha me perguntado o que estava achando de Noturno do Chile, de Roberto Bolaño, e comentou que @xerxenesky o defendia. Perguntei quem era esse cara e recebi essa resposta. Como adoro uma psicologia reversa, gosto criado desde a leitura da obra de Lemony Snicket, pesquisei um pouco sobre o escritor e seus livros publicados.“Se tem zumbis no meio, só pode ser bom”: assim inicia a orelha, escrita por Daniel Galera, em tom de verdade incontestável.

Nos últimos anos tenho visto alguns filmes do gênero (Extermínio, Extermínio 2, Zumbilândia e Dance of the dead, por exemplo) e já começo a ter maiores inclinações para concordar com essa teoria. Mas é fácil notar que a expressão mais utilizada para definir o livro (“faroeste + zumbis”) não dá conta de seu conteúdo.A história, arquetípica, é ambientada em Mavrak (nome estranho para o qual há uma explicação interessante) e protagonizada por famílias rivais: a dos Marlowe e a dos Ramírez. Essa é a parte do faroeste. Mas para melhor explicar a sequência de eventos desencadeados – que incluem a chegada de um xerife, sexo no feno, problemas entre pais e filhos, vírus de computador, xamãs e, finalmente, seres esfomeados por carne humana – eu findaria estragando a bala perdida literária que a última frase do segundo capítulo é.

A sensação é exatamente essa: você corre em meio ao tiroteio, acha um local seguro e, de repente, ouve um estilhaço: havia uma janela às suas costas. Sabe essa sensação?O enredo, bem construído e que soa – tamanha a naturalidade – como se escrito em pleno deserto, é acompanhado por recursos gráficos e uma linguagem adequada. O diferente uso de fontes tipográficas em momentos oportunos, como um trecho de diário ou uma cena de saloon que parece extraída um filme clássico de western, gerou uma atração imediata, quando folheado ainda na livraria. Quanto à linguagem, permita-me copiar um trechinho antes:

Sombras de cavalos e pessoas cavalgam e caminham nas casas de madeira clara. Os ouvidos de Juan escutam somente o vento e a areia. Ele nada pressente. O sol do meio-dia está eclipsado por uma nuvem cinza. Agacha-se e põe a cabeça contra o solo. Não há passos ou movimento em um raio de quilômetros. Levanta-se. Sua orelha fica cheia de areia por fora e por dentro. Uma esfera de poeira se aproxima. Abre a boca e sente pequenos grãos de areia se grudarem nas frestas de seus dentes, a sensação mais desagradável que conhece. Tenta cuspir parte da areia, mas, ao abrir a boca para isso, tudo que consegue é absorver outro punhado de grãos. Fecha a boca em desistência. Aguarda. Caminha. Olha. Espera.

O livro é curto, mas não se afoba. O narrador escolhe bem palavras e metáforas relacionadas à areia, tudo para que a sensação de aridez do deserto seja plenamente vivenciada: quer algo melhor do que o parágrafo anterior para explicar às mocinhas enojadas a razão de se cuspir tanto em westerns? Quer algo mais bonito do que narrar os efeitos da tequila com já sentia os tendões a relaxar, as amarras do mundo e da realidade afrouxando, um peso sendo suspenso? Lá pelas tantas do romance, dá pra ter certeza que a leitura está nos abandonando na parte de baixo de uma imensa ampulheta: imersos, ou melhor, enterrados na trama.

Um de meus métodos peculiares para dimensionar a qualidade de um livro reside em sua capacidade de me fazer vivenciar o mundo pelo olhar de outrem. Vou tentar explicar: não curto futebol, mas Michel Laub, em seu O segundo tempo, me fez dar maior valor (enquanto elemento da narrativa) a essa paixão nacional; apesar de curtir videogames, nunca tive um (e minha falta de coordenação motora não ajudou muito quando joguei na casa de amigos), mas Mãos de Cavalo, de Daniel Galera, me tornou um adolescente na época dos primórdios dos jogos de computador.

Não que eu negasse a importância cultural dos faroestes: adorei Kill Bill e sei que muito do filme se deve a referências aos westerns favoritos de Tarantino. Mas devo admitir que nunca me interessei de verdade por esses filmes. No entanto, depois dum livro bom como esse, fiquei me lamentando por não ter uma opinião formada para, por exemplo, uma pergunta como qual é o melhor faroeste, Era uma vez no oeste ou Meu ódio será tua herança? Queria poder defender apaixonadamente o meu favorito, tanto como quis me importar realmente se o Palmeiras ganha ou perde, depois do livro do Laub, ou como quis ser bom em algo além da primeira fase de Super Mario no Super Nintendo.

E se isso não é uma das coisas mais legais que a literatura pode fazer pela gente, eu não sei o que pode ser.

Areia nos dentes
Antônio Xerxenesky
Páginas: 144
Preço sugerido: R$ 25,00