Terminei a resenha de Retrato de um viciado quando jovem lamentando que Bill Clegg não narrava no livro seus dias de recuperação. Mas eu não sabia, ou havia ignorado, que o agente literário de Nova York reservaria esta história para outro livro, Noventa dias, que chega agora ao Brasil também pela Companhia das Letras. Aos 34 anos de idade, Bill está em uma luta contra o crack, droga que o deixou enfurnado em um quarto de hotel por dois meses consumindo quantidades exorbitantes da substância com a ajuda da vodca e do sexo com estranhos que o acompanhavam nas tragadas. Seu vício em crack lhe custou o namoro com o cineasta Noah, a sua sociedade com Kate e a sua agência literária, e também o convívio próximo com família e amigos. Como viciado, ninguém mais confiava em Bill, nem ele mesmo, e é com espanto que ele se vê no carro de um amigo, Dave, voltando de duas semanas de reabilitação para Nova York para tentar atingir a meta de noventa dias limpo e, enfim, se reabilitar.

A narrativa sincera e direta que Bill Clegg fez de sua ruína em Retrato de um viciado quando jovem está de volta em Noventa dias. Sem rodeios, ele escreve sobre todo o medo de estar de volta à cidade que o acolheu nos seus 20 anos de idade, onde construiu e arruinou toda a sua vida e sua carreira. Ele revela suas dúvidas sobre como sobreviver sem dinheiro e cheio de dívidas, se agarrando às pessoas que conhece nas reuniões para viciados para deixar o crack. Além disso, Bill conta de maneira emocionante o quanto é difícil superar o vício, o que sente quando a fissura volta e não consegue pensar em outra coisa senão consumir crack mais uma vez.

Assim que se dá conta de estar sozinho novamente, sem amigos ou conhecidos por perto para impedi-lo de voltar a se drogar, Bill começa a pensar na sensação que o crack lhe dá, bolando planos para pagar a dívida que tem com seus traficantes, Happy e Rico, para conseguir mais droga com eles. A maneira com que Bill retrata esse pensamento irrefreável já alerta o leitor de que sua jornada pelos noventa dias de sobriedade será muito mais difícil do que parece. E assim você lê o livro com a apreensão de que logo logo Bill irá ceder, a fagulha do crack vai voltar à sua mente e ele não irá dizer não. Vai voltar a ligar para Rico e Happy, vai voltar ao apartamento de Mark, amigo com quem ele passava dias se drogando antes de tentar a reabilitação, e vai abandonar novamente sua força de vontade contra as drogas.

Como em Retrato de um viciado quando jovem, Bill ainda enxerga na morte a redenção do seu vício. Se no livro anterior ele torcia por uma overdose, aqui a válvula de escape é a sacada de seu apartamento no décimo sétimo andar. Quando as coisas ficarem insustentáveis demais, ele pode se jogar e acabar com tudo. Quando a paranoia de estar sendo perseguido por agentes da DEA aumentar, ele poderá fugir da polícia pela sacada, e assim nunca será pego. Mas é óbvio que isso nunca acontece, e após uma nova recaída, Bill volta às suas reuniões na biblioteca perto de sua casa e na Meeting House.

 

“Como este guarda-chuva ridículo, qualquer fantasia que eu tinha de ficar bem, de refazer meu caminho numa cidade de vencedores superprodutivos, agora é obviamente uma ficção, um escudo patético contra uma verdade esmagadora. Acabou. Sou um grãozinho dickensiano em uma cidade para a qual não sirvo mais.”

 

As reuniões para viciados são parte fundamental para a recuperação de Bill, e o leitor só percebe realmente sua importância junto com o próprio autor. É nesses locais que ele conhece Asa, um jovem ruivo que lhe salva a vida várias vezes arrancando a droga de sua mão; e Polly, uma menina viciada em cocaína que tenta largar a droga enquanto sua irmã gêmea continua a receber traficantes em casa. Há mais pessoas que ele encontra, que lhe dão seu telefone para quando precisar, mas é Asa e Polly que se mostram imprescindíveis para a reabilitação de Bill, até mais que Jack, o seu padrinho durante esses noventa dias de recuperação.

Polly e Asa seguram a baixa estima que Bill tem de si mesmo, lembram-no de que ele é capaz sim de se manter limpo por noventa dias e, a partir disso, reconstruir a sua vida. Mas mais importante que isso, são eles que mostram a Bill que eles também dependem dele. Do relato aflitivo de sua luta para manter a ideia de se drogar longe de sua cabeça, aos poucos Noventa dias passa a se concentrar na luta de Bill para salvar também seus novos amigos. Ele começa a se sentir responsável por eles, e é esse sentimento paternalista que o leva a repensar seu impulso pelo crack, a evitar o consumo, pois, a qualquer momento, Polly pode lhe ligar pedindo para ser salva. E ele deve estar sóbrio quando isso acontecer, e deve estar sóbrio também enquanto espera. O egoísmo de Bill se transforma em preocupação pelo bem-estar de sua família e de seus amigos, e é nesse momento que ele percebe que é possível reverter o jogo e conquistar a marca dos noventa dias sem drogas.

A leitura de Noventa dias causa uma aflição constante ao leitor. Por mais que torça para que Bill se recupere – e saiba que isso vai acontecer –, toda hora você se pega pensando quantas frases faltam até que ele se drogue de novo e recomece a contagem dos dias. Quantas vezes mais ele vai entrar em uma das reuniões que frequenta todos os dias, levantar o braço e repetir: “um dia”. Bill Clegg encerra seu relato com uma espécie de mensagem a quem estiver enfrentando o mesmo desafio que ele enfrentou há mais de seis anos: que se você se agarrar nas pessoas que estão tentando se recuperar junto com você, ultrapassar a barreira dos noventa dias é possível.