Os nostálgicos dizem que tempo bom era o de antigamente, dos governos militares e líderes de pulso firme (leia-se autoritários), em que havia menos corrupção e violência e os políticos eram mais honestos e bem dispostos. Era, enfim, uma era pujante da vocação política a que Weber se referia1 e nós, miseráveis habitantes desse vale de lágrimas chamado Presente, deveríamos invejá-la. Mas se dependesse do filme Getúlio, de João Jardim, essa teoria logo cairia por terra, pois, apesar das falhas levemente comprometedoras, a obra bem sucede ao mostrar que até mesmo o “pai dos pobres” sucumbiu diante das decisões mais difíceis, revelando um alheamento e fragilidade raramente associadas a sua figura de grande estadista.

Não é comum o Cinema brasileiro dedicar-se à reconstrução histórica, especialmente a política, tema espinhoso. Preferimos comédias descompromissadas ou ficções realistas, mas não reais, e é justamente por isso que o filme de Jardim tem importância, repensando um dos nomes mais relevantes da história nacional, comprometido com os detalhes e até disposto a certa análise crítica.

Nesse quesito, poucos filmes comparam-se a Getúlio – recentemente talvez apenas Flores Raras, o bom trabalho de Bruno Barreto. A recriação histórica é pontual e a presença de políticos importantes, como Tancredo Neves (no filme, Michel Bercovitch), à época ministro da Justiça, e Afonso Arinos (Daniel Dantas), líder da oposição na Câmara, são bem realizadas. Outros personagens, de menor proeminência política mas igualmente relevantes, como sua filha, Alzira (Drica Moraes, ótima), e sua esposa, Darcy (Clarissa Abujamra), também estão presente, servindo à composição de detalhes biográficos.

A trama começa com o atentado da rua Tonelero, Copacabana, em 5 de agosto 1954, onde o jornalista e candidato a deputado federal Carlos Lacerda (UDN) levou um tiro no pé (nunca se soube se disparado pelos agressores ou por sua própria arma), e o major Rubens Florentino morreu. Daí seguem dezoito turbulentos dias até o suicídio de Vargas no palácio do Catete, Rio de Janeiro, à época ainda capital federal. O recorte histórico é, portanto, preciso, e a trama pende mais ao thriller do que à biografia política, acompanhando a investigação chefiada pelo coronel Scaffa (Alexandre Nero) sobre a autoria do atentado e o canto do cisne do presidente brasileiro que mais tempo ficou no poder.

Assim, logo surge o primeiro nome da alta cúpula da administração Vargas ligada ao atentado, o misterioso tenente Gregório Fortunato (o bom Thiago Justino), chefe da guarda pessoal do presidente. Pouco a pouco, as investigações também revelam esquemas de corrupção envolvendo, inclusive, parentes do presidente, como seu filho Lutero (Marcelo Médici), e seu irmão Benjamim (Fernando Luís), aumentando a crise ao evidenciar que se Getúlio não errara por ação, certamente pecara por omissão.

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Gregório Fortunato e Getúlio Vargas, no filme e na imagem real. A mesma mão que afaga é aquela que bate.

O roteiro tem falhas, sobretudo em sua primeira parte, em que a trama é excessivamente fragmentada, com cenas que às vezes vão do nada a lugar nenhum, visando apenas compor um mosaico de curiosidades sobre seu famoso protagonista (ora mostra-se o que Getúlio comia, ora os charutos que fumava, ora que não sabia amarrar os cadarços…). Seu maior problema, contudo, é ser didático demais, usando até mesmo legendas para nomear os personagens reais à medida em que aparecem em cena.

O problema de filmes assim, que tutelam a audiência, é o de não confiar nem em sua recriação histórica, nem no conhecimento do público. Como muitos filmes nacionais, Getúlio termina com legendas que visam fechar suas pontas soltas, explicando o que aconteceu com cada personagem secundário. Já em seu começo, contudo, vê-se o excesso didático, onde a voz em off do presidente faz uma desnecessária listagem das obras de sua administração, como a criação da CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) e da Petrobras. Tais ferramentas, além de esteticamente desagradáveis, são dispensáveis em roteiros bem ajambrados, que terminam redondos. Cinema é imagem, não frases explicativas; para tal, é melhor ler um livro – e sobre a personagem tem vários, com destaque à recente e elogiada trilogia de Lira Neto.

A edição aprimora o ritmo da história em sua segunda metade, e Walter Carvalho, saindo do fabuloso preto-e-branco que já lhe é característico, utiliza sabiamente o cenário do palácio do Catete, onde decorre a maior parte da trama, fazendo de sua câmera um olho bisbilhoteiro que observa escondido a íntima rotina presidencial, sempre por uma porta entreaberta, no melhor estilo “por dentro da fechadura”.

Já Tony Ramos como protagonista não deixa de revelar suas limitações de ator de novela. Embora um dos “queridinhos do Brasil”, havemos de convir que sua capacidade dramática é limitada. Por mais que sua caracterização seja tão boa quanto de A Dama de Ferro (Phillida Lloyd, 2011) – exceto pelo exagero na barriga, que engessa seu caminhar –, Tony não é uma Meryl Streep. Mesmo não sendo ruim, o ator chega apenas aos mesmos lugares comuns de interpretações passadas, com os velhos hábitos e exageros, sem muito de impostação vocal e vez ou outra derrapando no sotaque do gaúcho de São Borja.

Nesse filme, Getúlio é retratado como o presidente que, outrora ditador, mantém o compromisso de honrar a Constituição que o elegeu “nos braços do povo”, em 1951. Faz até a brincadeira de que, mesmo em meio à crise, não pode rasgar a Constituição vigente, pois já fizera isso com duas (a de 1891 e de 1934), e assim se vê num imbróglio que lhe pega de surpresa e cuja única saída encontrada foi um tiro no peito. Tiro este que, sabemos, foi mais um ato político do que impulso emocional. Tendo como oponente o “corvo” Carlos Lacerda (Alexandre Borges, estridente), jornalista que tinha à disposição o jornal Tribuna da Imprensa e as televisões Globo e Tupi para vociferar contra o presidente, Getúlio, já idoso, obeso e cansado, não tinha nem o mesmo ânimo, nem a mesma habilidade de confronto que um dia tivera, quando comandou uma revolução a cavalo.

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Atento à fidelidade da reconstituição: Alexandre Borges (esquerda) em caracterização e interpretação semelhantes à chata estridência de Carlos Lacerda (direita).

Por meio de fotos da época, o filme cita as manifestações populares pela renúncia de Getúlio, situadas na mesma Cinelândia, centro do Rio, onde em junho e julho de 2013 ocorreram as manifestações da Revolta do Vinagre. Vê-se, por aí, que a insatisfação popular do brasileiro vem de longa data e que o povo na rua sempre pressupõe certa dose de violência.

Contudo, também revelando nossa esquizofrenia, assim que Getúlio “sai da vida para entrar na História” com um tiro no peito (o filme utilizou-se até da arma verdadeira), a opinião pública desloca-se em cento e oitenta graus, retornando seu status de herói nacional e transformando Lacerda e os militares em traidores. Assim, milhares de pessoas em lágrimas carregaram o corpo de Vargas pelas ruas da cidade até o aeroporto, onde foi levado de volta ao Rio Grande em que nasceu. Com sua morte, afirmou Tancredo Neves (em frase que aparece nos créditos da projeção), Getúlio atrasou o Golpe Militar em dez anos, visto que diante do furor nacional os militares dissidentes não tiveram outra opção além de apoiar a posse do vice-presidente, Café Filho (Jackson Antunes, em papel pontual, mas muito bom), achando espaço para elevar-se novamente apenas em 1964, diante da “ameaça comunista” representada por Jango.

Se Getúlio seria condenado ou não pelo possível envolvimento nos crimes revelados pelo coronel Scaffa, é difícil dizer. Lembremo-nos, contudo, que se trata do Brasil, país em que mensaleiro tem pedicure na cadeia e envolvido com propina é candidato a governador em plena era da Ficha Limpa. Lembremos, com a ajuda do bom filme de Jardim, que estamos no país que carregou seu maior ditador nos braços, e que, mesmo de maioria católica, chorou copiosamente por seu suicídio.

http://www.youtube.com/watch?v=0yXqzVwfbhA

  1. Max Weber, em A Política como Vocação.