fresanJesus Cristo é mais baixo do que se espera, carrega uma mala e usa  óculos Ray-Ban modelo wayfarer. Ou talvez não seja J.C., e sim um sósia mal-intencionado. Eis o plot de ‘Vidas de Santos’, segundo livro e ‘novela fragmentada’ do argentino Rodrigo Fresán.

Fresán é um grande autor disso que ele mesmo denomina novelas fragmentadas: amontoados de contos que devem ser lidos em ordem e que, por vezes, sobrepõe-se. A cada conto se pode entender um pouco mais da história que, ao fim, fecha-se como se fosse uma novela composta por múltiplos capítulos independentes- mas ainda fortemente relacionados. É uma estrutura que pode ser confusa- mas muita coisa na obra de Fresán se foca justamente na confusão.

Como é constante na obra de Fresán, são inúmeras as referências à literatura e à cultura pop, e são inúmeros os personagens. Selene, a menina muito feia filha de dois modelos argentinos e que nunca tirou seu disfarce de Donatelo, a Tartaruga Ninja; o Aprendiz de Feiticeiro, garoto que fugiu de casa após inundá-la, querendo ser como Mickey Mouse em ‘Fantasia’; o escritor maldito de roteiros cinematográficos que nega a existência do que seria sua obra prima, o filme maldito sobre Jesus Cristo ‘The Crucifixion’; o último caçador de santos; o vampiro tocado por Jesus Cristo; Freako; um hotel fantasma eternamente em chamas até o fim dos tempos; o filho que quando grande queria ser escritor e que trouxe desastres à cidade de Canções Tristes por ter começado a ler Drácula antes de terminar outro livro. Todos estes personagens estranhos e, por vezes, contraditórios, misturam-se em uma história sobre religião, escrita por um autor ateu.

A religião é o tema principal, mas não o centro da obra: são suas imagens que Fresán usa, assim como usaria mitos gregos ou outros. Como repete várias vezes durante o livro: ‘não importa se Deus existe ou não, ele é certamente um grande personagem’. E usando esse grande personagem e algumas de suas obsessões Fresán fala, na realidade, sobre a literatura. Que não deixa de ser religião.

Uma literatura que, para Fresán, parece estar sob um risco eminente: modas que criam inúmeros best-sellers sobre um único tema, adaptações cinematográficas equivocadas e a própria postura da maioria dos escritores e dos leitores. Assim como a postura dos fiéis- e mesmo desse estranho Jesus Cristo- com relação à religião leva, em seu livro, a um apocalipse precoce.

Eu não diria que é o melhor dos livros de Fresán. Mas com certeza é um grande livro, que vale a pena ser lido- dado que se tenha paciência para as quase 400 páginas cheias de referências ao cinema, música, arte, história, literatura. Vale a pena ser lido até porque as imagens aqui utilizadas continuam aparecendo nas obras posteriores: a cidade de Canções Tristes é o cenário de quase todos os livros do autor, e alguns personagens- como Selene- são reinventados em ‘La Velocidad de las Cosas’.

Fresán é um autor difícil, sem dúvida. Mas eu arrisco dizer que é, atualmente, meu autor favorito e um dos melhores escritores vivos hoje.

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