Kazuo Ishiguro é um autor nipo-britânico que tem em seu currículo livros como O Inconsolável sobre um pianista que aparenta ter perdido parte da memória e considera o local onde realizará um concerto um tanto quanto surreal; e Quando éramos órfãos que conta em primeira pessoa a vida de Christopher Banks um famoso detetive inglês que passou sua infância em Xangai e vive num presente vazio.

Todavia, venho para falar de Não me abandone jamais, traduzido por Beth Vieira e lançado pela Companhia das Letras, outro romance de Ishiguro narrado em primeira pessoa, especificamente por uma mulher chamada Kathy B. . Kathy chegou aos 31 anos de idade e está pronta para se aposentar da sua carreira de cuidadora. Enquanto isso, ela rememora os melhores momentos de sua vida no internato Hailsham, onde cresceu com Ruth e Tommy. Essa simplória sinopse esconde um romance de ficção científica sensível e melancólica.

O livro foi adaptado para às telas do cinema em 2010 por Mark Romanek e com roteiro de Alex Garland (Extermínio) e do próprio Ishiguro (que considera suas obras infilmáveis). No elenco estão Andrew Garfield, Keira Knightley, Sally Hawkins, entre outros.

Aviso de antemão que para resenhar esse romance, um tanto quanto chocante, é preciso revelar importantes fatos do enredo e para mostrar sua grandeza e força de narrativa, história e personagens é inevitável que escape algum detalhe  por mais natural (essa palavra irá se repetir) que seja.

À primeira vista é notável o talento de Ishiguro em transformar sua voz de narrador em uma personagem feminina, esquecemos que o autor é um homem e acreditamos piamente que quem nos conta essa história é Kathy – tamanha a naturalidade das descrições, diálogos e convivência com outros personagens. Mais natural ainda é o desenrolar dos fatos: aparentemente uma história de adolescência e crescimento – o que na verdade também é – mas com fatos devastadores como a revelação do que são os cuidadores e os doadores e por consequencia seus destinos.

Aqueles que estão no internato não tem qualquer contato com o mundo externo, não tem parentes e devem exercitar diversas atividades lúdicas para depois trocar com outros estudantes, criando laços e estreitando relações. Aos poucos a ficção científica brota no meio da narrativa: os alunos de Hailsham são doadores e estéreis e, na verdade, Kathy e seus amigos tem seus destinos traçados desde o começo da vida: eles são clones da escória humana – prostitutas, criminosos, excluídos – meras peças de reposição preparadas para serem doadores de órgãos. Nada disso os espanta ou revolta, afinal desde o internato são preparados para essa vida – o que acostuma o próprio leitor (outro trunfo da narrativa de Ishiguro), antes chocado, com esse “estilo de vida”.

Kathy e Tommy ainda alimentam esperanças de algo impossível de se alcançar devido a sua realidade e quando se deparam com o tal mundo real os laços emocionais estremecem e esfriam. Nesse ponto da narrativa o leitor gostaria de mudar a vida dos personagens e na verdade tem de aceitar tudo que acontece – o destino deles.

Se existe essa revelação tão bombástica o que torna Não me abandone jamais tão incrível? A melancolia destrutiva e o final arrebatador. Não é um romance apenas para os aficionados em ficção científica; é uma história de crescimento, de ética, de destino, tudo culminado numa visão – inocente e devastadora – dessa naturalidade que é ser um doador e um cuidador e, acima de tudo, da existência e desistência humana.