Camilo José Cela recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1989, láurea que lhe foi concedida, segundo a Academia Sueca, por sua “prosa rica e intensa, cuja compaixão contida cria uma visão desafiadora da vulnerabilidade do homem”. Cela foi um dos principais autores associados ao movimento literário chamado “Tremendismo”, que preza por descrições cruéis e violentas como recurso para construir as imagens e sentidos nas narrativas.

Embora não seja a obra mais conhecida de Cela (título que cabe a A colméia), A família de Pascual Duarte, que data de 1942, é um exemplo bastante expressivo do que foi o chamado “Tremendismo”; tanto que em menos de um ano de sua publicação, a crueza rascante de suas páginas lhe custou a proibição de sua publicação. Uma nova edição só veio a público em 1946.

Na obra, Cela nos apresenta ao personagem principal, Pascual Duarte, morador de um pequeno povoado no interior da Espanha cuja história está gravada em um manuscrito autobiográfico que Cela supostamente encontrou esquecido no balcão de um estabelecimento. Duarte, que escreveu grande parte de suas memórias quando esteve preso, é um homem que experimentou muito mais fel do que mel em sua trajetória, ao passo que quase toda a extensão de suas memórias se volta justamente ao relato dessas experiências amargas pelas quais o narrador-protagonista passou.

Os pais de Pascual não tinham uma boa relação, a irmã não estava presente para ajudá-lo a suportar as agruras da vida doméstica e o irmão, que sofria de sérias (e agressivamente penosas) deficiências, por sua própria condição, somente se somou às já acumuladas intempéries de Pascual. O livro se volta a narrar (ou meramente transcrever o documento encontrado por Cela, segundo consta no prefácio) como o próprio Pascual experimentou as situações nas quais viveu, o que possibilita que o leitor tire suas próprias conclusões a respeito das decisões que tomou e os desdobramentos delas para a vida do protagonista.

O comportamento frio e distante que a narrativa tem lembra um pouco aquela indiferença com que Mersault se comporta em O estrangeiro, de Camus (que, aliás, é do mesmo ano do livro de Cela); e o estilo da escrita, se me permitem a ‘heresia’, me lembrou alguns cacoetes machadianos, principalmente no que tange ao constante entrecortar das frases por comentários de interlocução com o leitor, mesmo que não haja aquele diálogo direto que certos textos de Machado de Assis possuem, mas um diálogo mais introspectivo sem deixar de ser um comentário.

Os méritos da obra não estão em seu estilo ou inovações formais, mas na maneira como o próprio Pascual Duarte relata os eventos de sua vida, colocando-o na posição de vítima e vilão em diversos momentos do livro, dependendo do contexto no qual suas ações são levadas a cabo. Aliás, deixem-me retificar: tratar a complexidade dos questionamentos de Cela levando em consideração somente a dicotomia ‘vítima’ x ‘vilão’ é limitar a profundidade de sua potencialidade. O conhecimento das situações do ponto de vista de um sujeito, que narra sua própria história coloca o leitor em uma posição sui generis em relação à trajetória vista de forma ‘externa’ (o que caracteriza de forma mais específica a terceira pessoa), fazendo com que a cada decisão e ação de Pascual, o leitor possa se perguntar se tal ato é condenável, justificado, explicável, condizente etc. Ou refletir sobre a impossibilidade de fazê-lo.

A crueza com que Pascual toma suas decisões está diretamente ligada a uma cadeia de causalidade que remonta de maneira mais remota a um sem número de eventos e influências, que dizem respeito à forma como seu próprio caráter e visão de mundo foram sendo moldados pelas intempéries ao longo do tempo. A “falta de compaixão” da prosa de Cela está estampada na violência com que Pascual “resolve” seus problemas (o que acaba lhe custando também o encarceramento), mas não seria essa um aspecto do que foi sua vida? Sua violência é assim tão injustificada? Ou inexplicável? Até onde seu comportamento o torna ‘certo’, ‘errado’, ‘vítima’ ou ‘vilão’? Esses são somente alguns das interrogações que o romance de Cela nos proporciona.