“O Delírio de Turing”, do escritor boliviano Edmundo Paz Soldán, é uma narrativa com muitos elementos do cyberpunk. A história é ambientada em um tempo sombrio, violento e hostil, em que a realidade virtual e ciberespaço são o principal ponto de conflito entre hackers e grandes corporações, no caso específico, a Global-lux. É possível perceber de cara que o autor herdou muito de clássicos como “Neuromancer”, de William Gibson, e “Piratas de Dados”, do Bruce Sterling.

Nas cinco partes do livro, temos estruturado o curso das vidas de sete personagens em um cenário inquieto: Rio Fugitivo, terra boliviana que passa por protestos, crises de recursos naturais e uma nova forma de guerra. Talvez esse cenário situado no Terceiro Mundo e cheio de particularidades seja a chave para uma obra com o resultado bastante original.

Como personagem principal da trama, temos Miguel Sáenz (Turing), um criptólogo muito respeitado que trabalha para um órgão do governo especializado na busca de pessoas que cometem crimes cibernéticos – a Caixa Preta. Ele passa boa parte do seu tempo buscando mensagens dos opositores até começar a desconfiar das intenções de seu chefe, Ramírez-Graham. Paralelamente, Flávia, Filha de Miguel e Ruth, circula pelo ciberespaço, mundo hacker e blogs e ajuda Ramírez-Graham na busca de um hacker misterioso, que têm dado grande trabalho à Caixa Preta – Kandinsky, que dirige ameaças à empresa de energia elétrica dominante na região, Global-Lux

Ainda existe o personagem do juiz Cardona, que busca a todo custo prender Miguel e Albert. Esse, que convalesce em um hospital, onde delira e têm memórias por vezes desconexas sobre a sua vida, de outros criptoanalistas e a situação do país, como mostra o trecho a seguir:

Sou muitos… Mas sou um… Os historiadores se preocupam com os dirigentes das guerras. Acham que quem determina os movimentos das tropas são os principais responsáveis (…) Não os interessam muito os criptólogos. Os que codificam e os que decifram. O trabalho num escritório não é emocionante… Muita matemática…lógica demais… E, no entanto, são eles os que definem o curso das guerras

Edmundo Paz Soldán consegue articular, de maneira emocionante, a trajetória de todas essas personagens. Se, como o personagem Albert acusa, o trabalho de criptólogo não é emocionante, o autor consegue provar o contrário com esse romance. O uso de flashbacks, omissão de fatos, confrontos de ponto de vistas das personagens, entre outros recursos, não deixa a história confusa, mas sim quebra com a linearidade e deixa uma constante sensação de clímax para o leitor.

É importante mostrar também que mesmo se tratando de uma ficção cyberpunk e aparentemente distante da realidade em que vivemos, o autor buscou muita inspiração na cultura e problemas do seu país, de forma que o livro também apresenta muito da vivência boliviana em seu âmbito social. Paz Soldán é um autor de Cochabamba e, se olharmos para a história do local, perceberemos com facilidade que a guerra retratada no livro com um olhar científico e futurista já aconteceu no passado de outra forma.

Em 2000, Cochabamba viveu uma guerra pela água, como declara Jim Shultz “Cochabamba se tornou a linha de frente da crescente batalha internacional contra as regras da globalização econômica. Enfrentando soldados, resistindo à declaração de uma lei marcial e se levantando contra a onda da teologia do mercado econômico, a população mais pobre da América do Sul expulsou uma das empresas mais ricas do mundo e reconquistou algo simples e básico – sua água.” Vale lembrar que a primeira edição de “O Delírio de Turing” foi publicada em 2003 e que o autor escreveu a obra neste momento histórico.

Ao longo do livro, percebemos que a figura do hacker Kandisky é uma representação de toda a sociedade ativista da época, que buscou quebrar as regras para conseguir seus direitos. “O trabalho de Kandisky, ao lado de outros ativistas, seria fazer com que os tremores do descontentamento emergissem para a superfície.”

Com tudo isso, considerei a leitura de “O Delírio de Turing” de forma muito positiva. Até então, conhecia muito pouco da literatura boliviana e não havia lido nada que envolvesse a temática da ficção científica e cyberpunk, coisa que pretendo mudar depois de ter entrado em contato com essa obra.

Título Original: El delirio de Turing

Autor: Edmundo Paz Soldán

Tradutor: Bernardo Ajzenberg

Páginas: 322

Editora: Record

Preço: R$ 47,90

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