Quando é possível renunciar uma luta que está silenciada há mais de uma década? O romance A Quem de Direito, do argentino Martín Caparrós, lançado pela Companhia das Letras e traduzido por Heloisa Jahn e Lucia Maria Goulart Jahn, conta a história de uma renuncia silenciada. Carlos é um ex-militante que agia com um grupo de esquerdistas que queria derrubar a ditadura militar argentina (conhecida como Revolução Argentina) que “desapareceu” com mais de 30 mil pessoas entre 1976 e 1983. Ele tenta ignorar seu passado e não considera que a luta para derrubar o governo tenha funcionado, classificando sua geração como fracasso completo.

O único contato que tem é com Juan, ex-companheiro que agora é um político bem-sucedido que acredita em mudanças mesmo após tanto tempo, e Valerie, uma prostituta que o acompanha todas as quintas-feiras e com quem tem discussões calorosas sobre o período em que ele lutou. Durante uma conversa com Juan, sua esposa Estela – que desapareceuem 1977 grávida – é mencionada. A simples citação faz com que Carlos entre num turbilhão de crise existencial em busca de respostas para seu passado de lutas, sobre o destino da esposa desaparecida e sobre seu próprio presente, agora que descobriu ter uma doença e não querer tratá-la.

A investigação de Carlos fará com que ele conheça diversas figuras que no passado seriam suas inimigas declaradas – e que ironicamente o ajudarão na sua busca. Contudo, ele não busca vingança depois de tantos anos. A ideia de vingar-se apenas comprovaria que Carlos não conseguiu fugir de seu passado e construiu uma vida fora de uma ideologia de olho por olho. Por mais que o artifício de usar violência para curar as máculas intricadas na sua história, as descrições sobre como eram feitas as torturas são chocantes em alguns momentos – mais fortes quando descrevem como seriam as torturas com mulheres grávidas e o destino dos filhos que elas esperam.

Todavia, a busca por respostas, que reconstroem parte da história que ele desconhecia sobre a tortura no período militar, desencadearão um leque de hipocrísia e esquecimento. Os “heróis” sobreviventes do período usam da fama para conseguir se engajar no meio político, abandonando a memória daqueles que lutaram, morreram e desapareceram. Caparrós usa esse esquecimento e a investigação que seu personagem tomará para desmascarar o mito melodrámatico que alguns ex-guerrilheiros usam numa sociedade esteriotipada. Como um cara de coração partido contando sua história para conseguir novas conquistas – muitas delas vazias. Ou seja, o legado da ditadura é um país em ruínas, onde seus heróis são esteriótipos criados para iludir.

É interessante notar como a mudança de lados, de posturas políticas, de status, fazem com que a interpretação de fatos históricos seja dúbia. Juan já foi militante e hoje se esconde em discursos pré-concebidos – artifício político muito bem conhecido – para não confrontar a realidade do fracasso de uma época, onde muitos davam a vida por seus ideais. O mesmo se aplica a Velarde, um ex-militar que vive assombrado pela culpa e tenta se redimir ajudando ex-militantes.

Um dos maiores triunfos de A Quem de Direito é mexer com a paciência do leitor, mesmo que os diálogos internos e pensamentos do protagonista sejam instigantes, acabam por tornar-se repetitivos. Enquanto alguns se aproveitam de sua história pessoal que ficou marcada num período tão violento, Carlos soa como um velho rabugento e irritante ao falar sobre um passado sem glórias, um fracasso que poucos – ou ninguém – é capaz de admitir e uma geração que goza de uma liberdade apática, passiva e conformista.

A Quem de Direito não é um livro de denúncia, é uma provocação àqueles que lutaram e se esqueceram porque lutaram, uma homenagem aos que desapareceram e uma mensagem de que heranças políticas e ideológicas podem criar heróis de fachada e heróis esquecidos.