Margaret Selzer é uma escritora norte-americana descendente de europeus e de povos indígenas daquele continente. Cresceu com uma família adotiva e acabou caindo em um ciclo de violência e drogas, que matou muitos de seus familiares e amigos. Ela relatou tudo isso em seu livro Love and Consequences.

Misha Defonseca era uma garotinha judia que teve sua família levada pelos nazistas. Apesar de ter escapado desse terrível destino, não tinha para onde ir. Acabou sendo adotada por uma matilha de lobos, graças à qual sobreviveu. Anos depois, a menina, que chegou até mesmo a matar um soldado alemão, escreveu suas memórias no livro Misha: A memoir of the Holocaust years.

Por último temos Benjamin Wilkomirski, um órfão-judeu lituano que passou sua infância nos campos de concentração. Em seu premiado Fragments: memoirs of a wartime childhood ele narrava em detalhes a crueldade infligida pelos nazistas, as execuções e mesmo os ratos devorando os cadáveres de seus familiares e amigos.

Esses três escritores, porém, tem mais em comum do que apenas suas vidas difíceis e traumáticas. Eles compartilham o fato de que essas memórias- que os catapultaram para fora do anonimato- nunca aconteceram. Margaret Selzer na verdade se chama Margaret Jones, não tem antepassados índios, não foi adotada e nunca chegou perto de drogas. Misha Defonseca não era judia, seus pais eram cristãos belgas membros da resistência contra os nazistas e que foram capturados pela Gestapo, sendo libertos em troca de informação. Benjamin Wilkomirski não era judeu e nem lituano, mas sim suíço. Clarinetista, na infância vivia com sua mãe em uma área rural, relativamente afastado da guerra.

Como eles, existem inúmeros autores de memórias falsas, alguns chegando a extremos para validá-las- como Bernard Holstein, na verdade Bernard Brougham e autor de Stolen Soul, que chegou a tatuar um número no antebraço, como faziam os nazistas com os prisioneiros judeus.

Mas será que eles não poderiam vender seus livros como pura ficção, e evitar assim a humilhação ao serem desmascarados? Aparentemente, não. Por uma variedade de motivos.

O primeiro, e mais cruel, talvez seja o mercado editorial. James Frey, autor de A Million Pieces, memória falsa sobre seu alcoolismo e recuperação, tentou vender sua obra como ficção. Foi rejeitado 18 vezes. Quando seu agente começou a oferecer o livro como realidade, a Random House logo interessou-se, oferecendo um adiantamento de 50 mil dólares. A Million Pieces tornou-se um best seller e Frey uma figura heroica.

Outra razão para esse tipo de mentira é justamente a necessidade de uma vida interessante. Eu escuto muita gente falando que quer escrever e dizendo que, a grande dificuldade, é que hoje em dia não se pode mais ter uma vida interessante o suficiente. Nada mais lógico, então, do que inventar uma vida interessante. Selzer e Wilkomirski fizeram exatamente isso: por mais que não tenham tido vidas fáceis, inventaram uma realidade em que tudo foi ainda pior, ainda mais complexo, em que existiu ainda mais sofrimento. E escrevera sobre isso.

Existe ainda a tola necessidade de oferecer esperança às pessoas: o mundo vai mal, então porque não  inventar uma história em que a esperança, a vida e o amor prevalecem, e dizer que é verdade? Herman Rosenblat, que supostamente conheceu sua esposa através da cerca de Auschwitz (o que narra em The Angel at the Fence) pensou que fazer as pessoas acreditarem nisso faria do mundo um lugar melhor.

Por fim, existe o trauma, o medo. Defonseca começou a inventar sua infância muito antes de pensar em escrever: assim que foi viver nos Estados Unidos. Ela só transformou suas memórias em livro por conta de uma sugestão de uma conhecida. Ao ser desmascarada ela declarou que ela inventou aquilo pois não queria mais ser conhecida como ‘a filha do traidor’. E que o livro relata, sim, a realidade: independente de as coisas terem acontecido como ela disse ou não, aquela é a realidade dela.

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