Há sempre um clima mórbido, de tragédia iminente em cada um dos escritos de Kafka, sejam romances, contos ou pequenas narrativas. Defrontar-se com alguma obra de Kafka é como, usando as próprias palavras do autor ao falar sobre a literatura, ser atingido por um machado que abre o mar congelado que há dentro de nós.

Cada uma das pequenas narrativas que compõem o livro Um médico rural possui basicamente esse mesmo ethos macabro. É um livro que possui passagens fundamentais para perceber os motivos recorrentes das obras, as obsessões pessoais do autor e as idiossincrasias de sua linguagem e de seu universo de significação e sentido.

O conto que dá título ao livro é bastante perturbador. Um médico é chamado para atender um homem que sofre de uma ferida bastante severa em uma parte do corpo em que não é capaz de enxergar. O médico, cujo cavalo havia morrido, consegue outro emprestado de um cavalariço, que, por sua vez, deixa o médico perturbado pelas intenções libidinosas para com sua criada, ao passo que a visita ao paciente se dá com o médico absorto na situação doméstica longe dali.

Mesmo enxergando as cabecinhas brancas dos vermes se mexendo dentro da ferida, e conhecendo as implicações do juramente de Hipócrates que havia feito, ele ouve sua “natureza” humana no melhor putrefato fatalismo kafkiano e tranqüiliza o paciente com uma pseudo-segurança de que a saúde havia de melhorar e a ferida não era tão grave assim.

Diante da lei é um ótimo exemplo da inumanidade da burocracia e como, para usar da metáfora do conto, as portas se fecham e a passagem por elas é estreita e encontra-se sistematicamente vetada, apesar da capacidade ilusória que ela tem de criar a possibilidade de passagem. Ao final, o estrondo dela se fechando é o que resta ao que almejava a cruzar. Ah, o requinte idiossincrático!

A questão concernente ao traumático relacionamento familiar, principalmente com o pai (vide Carta ao pai), também está incrustado nesse livro, de maneira bastante evidente em Onze filhos, em que o narrador vai descrevendo seus onze filhos, e demonstrando os defeitos e as razões de sua insatisfação em cada um deles. Chega a ser engraçado perceber como há sempre algum motivo, por mais banal ou ínfimo que seja, que faz com que o pai desaprove os filhos.

Preocupações de um pai de família é outro bom exemplo de como as pequenas narrativas de Kafka ajudam a elucidar preocupações mais longamente abordadas em outras obras suas. Um objeto/ser estranho se torna um enigma para o narrador, embasbacado pela singularidade dele, pois Odradek, o objeto/ser que perambula estranhamente pela história, é um mistério que, metaforicamente, poderia ser uma espécie de “entendimento ontológico”: apesar de ele existir como uma espécie de miragem que se persegue mas dificilmente se aproxima (e quando se aproxima, a interpelação se mostra infrutífera), ele exprime como a busca de sentido é uma busca que, no final das contas, não dá em nada. É a aporia em que redundam as narrativas de Kafka, ao passo que, assim como o narrador do conto queira compreender Odradek, também nós queremos compreender-nos através de Kafka, mas cuja esfíngica literatura, nos mostra o destino fatídico que temos todos e dos quais a realidade é formada.

O tema do cárcere sufocante e do desespero do prisioneiro que vê sua cela mas não consegue dela desvencilhar-se vem à tona em Uma mensagem imperial, em que o receptor da mensagem, você (isso mesmo, o próprio leitor) se vê às voltas com um labirinto do qual não consegue sair, mesmo que o imperador, em seu leito de morte, lhe tenha confiado algo importante a ser transmitido para outrem. A meu ver, nesse conto, Kafka consegue dar uma bela chave de interpretação para sua literatura, pois se transferirmos o autor à pele do portador da mensagem, perceberemos que Kafka foi esse sujeito portador de uma mensagem relevante acerca de nossa realidade que acabou por se ver sufocado por ela mesma.

Há a necessidade de fazer algumas menções honrosas: Um relatório para uma academia (um macaco contando sobre sua adaptação a condição humana); Chacais e árabes (morte e libertação no lúgubre cenário desértico); Um sonho (Joseph K. sonhando com sua própria lápide, o encantamento da morte o chamando para o terrível destino) e assim por diante. Como o Tiago disse uma vez em uma resenha sua, é difícil dizer o que é essencial em Kafka.