Quando as pessoas procuram sua cara metade, esperam que o que sentir o outro também sinta e que eles possam partilhar os melhores e piores momentos de maneira extraordinária. Na condição de relacionamento, todos procuram alguém para dividir a dor, por exemplo, de perder um ente querido – um ombro ou algo que o valha. Daniela, professora do secundário, e Yaari, engenheiro, são um casal que esteve junto durante anos a fio, realizando viagens e crescendo na vida. A história dos dois, pela primeira vez separados por causa de uma viagem, é contada através das velas acesas no candelabro do Hanukah – o que serve também como divisão dos capítulos de Fogo Amigo – e sobre seus sete dias separados. Ela na Tanzânia e ele em Tel Aviv. Esse simbolismo com as velas é uma das diversas alegorias que A.B. Yehoshua usará para descrever o desligamento entre religião e humanidade.

Lançado pela Companhia das Letras em 2010, Fogo Amigo traz um ar apaixonante ao descrever as angústias de Daniela em uma viagem em busca do luto pela irmã – a que fez questão de fazer sozinha e, ao mesmo tempo, confronta sua escolha e recrimina o marido por deixá-la só -, mas nunca deixa de escapar diversas críticas ao estado de Israel e, principalmente, de todo conflito que deixa mortos e feridos por uma ideologia em que poucos acreditam. Ela ainda tem a companhia do viúvo de sua irmã, Yirmiyahu, que vive atormentado pela perda do único filho num conflito na Faixa de Gaza por ‘fogo amigo’ (expressão utilizada para descrever quando um alvo civil/militar é morto por aliados/parceiros durante uma guerra). Yirmi ainda justifica sua negação com a religião ao ver a ex-cunhada carregando uma Bíblia, afirmando que naquelas palavras encontrará tragédia e morte através de um Deus ciumento.

Os lugares descritos pelo autor são um fator positivo a parte, com grande ritmo de escrita, Yehoshua consegue mapear na mente do leitor grandes paisagens: imponentes e grandiosas, populosas e desertas; e sons. Aliás, os sons do vento tem grande importância na trajetória de Yaari enquanto longe da esposa. Como um engenheiro renomado, ele precisa solucionar o problema de infiltração de ar no poço do elevador do último prédio que ajudou a levantar. Há o conflito entre a racionalidade e a espiritualidade, os ventos que assombram esse edifício representam os civis mortos em conflitos de Israel – lembrando que as palavras vento e espírito são a mesma em hebraico -, sons extremamente lamuriosos e taciturnos.

Não se pode excluir que como se tratam de duas histórias paralelas e separadas, que correm com coincidências, referências e “ensinamentos” similares, há outras histórias de menor teor que criam a atmosfera do tempo atual – o presente – desses sete dias (como o pai doente de Yaari). Cabe ao leitor juntar as duas histórias principais e distintas numa terceira (uma intenção quase inconsciente do escritor, como ele mesmo afirmou na sua vinda ao Brasil em 2010) e notar os detalhes que separam amor, sexo, morte e vida.

Com uma voz política bem ativa, e uma das poucas vertentes do livro que não se camufla, Fogo Amigo tem passagens belas e tristes se cruzando a cada nova página, explorando a humanidade, espiritualismo e existencialismo sem nunca perder a compaixão.