A primeira vez que tive contato com a obra de Mia Couto foi através do livro “O último vôo do flamingo”. A narrativa era carregada pela crença popular africana, junto com a sensiblidade e ironia refinada do autor. O que posso dizer? Me encantei com o jeito que Mia Couto transpunha a historia ficcional para o papel. Em “E se Obama fosse afriacano?” não foi diferente. O livro é uma reunião de ensaios que foram criados, originalmente,  para serem parte de conferências e intervenções, ou seja, eram textos para serem falados e que, posteriormente tornaram-se registros textuais. A oralidade ainda está marcada em cada página do livro, tornado a leitura fácil e dinâmica, além de dar a sensação de proximidade entre leitor e escritor.

Citei O último vôo do flamingo porque acho que a ficção e não-ficção tem pontos em comum nos textos de Mia Couto e essa foi uma das primeiras reflexões que tive ao me deparar com o livro “E se Obama fosse africano?”: O autor valoriza a pessoa. Se na ficção ele cria personagens com a preocupação de detalhar cada aspecto de sua personalidade e ressaltar sua humanidade, na não-ficção ele faz questão de mostrar como é importante que cada ser humano se imponha e seja forte, além disso, atenta para que sejamos únicos. Um exemplo disso está no texto “Quebrar Armadilhas”, que foi preparado para a Intervensão no Congresso de Leitura COLE, em Campinas: “Esta biologização da identidade é uma capciosa armadilha. Simone de Beauvoir disse: a verdadeira natureza humana é não ter natureza nenhuma. Com isso ela combina a ideia estereotipada da identidade. Aquilo que somos não é o simples cumprir de um destino programadonos cromossomas, mas a realização de um ser que constrói em trocas com os outros e com a realidade envolvente.”

A sensibilidade e ironia continuam também. Mia Couto usa muito o recurso da metáfora em sua narrativa, citando até mesmo elementos do cotidiano para explicar seu ponto de vista, por exemplo, no texto “os sete sapatos sujos”, o autor faz uma severa crítica ao uso de eufemismos para designar algumas pessoas. Não se pode dizer preto ou negro, como se isso fosse rezolver o problema. O uso da metáfora aparece com uma comparação com a culinária. Segundo ele: “Nós fomos a reboque destas preocupações de ordem cosmética. Estamos reproduzindo um discurso que privilegia o superficial e que sugere que, mudando a cobertura, o bolo passa a ser comestível. Hoje assistimos, por exemplo, a hesitações sobre se devemos dize “negro” ou “preto”. Como se o problema estivesse nas palavras.”

Mas então, Mia Couto é um escritor africano, de Moçambique, precisamente, e escreve, entre muitas outras coisas, sobre sonhos (não os que temos a noite, mas sim aqueles em que projetamos um final feliz no futuro de nossas vidas). Talvez quando eu tenha citado acima a preocupação do autor em preservar a pessoa, isso tenha parecido um pouco utópico, ainda mais se considerarmos a realidade africana, que tem um histórico de lutas e dominação. Pois bem, Mia Couto é sim utópico “a poesia é um modo de ler o mundo e escreve nele um outro mundo”. O autor quer sim um mundo novo. “Todos queremos um mundo novo, um mundo que tenha tudo de novo e muito pouco de mundo. A isso chamaram de utopia… que vem do grego, que dizer o “não-lugar” (em contraponto com o lugar concreto que é o nosso mundo real)” Mas, no entanto, Mia Couto atenta que, para ele, existe uma inversão: O mundo real é que é um não-lugar. Para ele é incabível que chamemos de lugar um espaço em que vivemos uma vida que é muito pouco nossa, um ciclo onde o ser humano tem cada vez menos espaço para fazer escolhas e pensar por si só.

Mais uma vez falando sobre a nacionalidade do autor (moçambicano), pode-se pensar que seus textos ficam muio presos à realidade do continente e pouco tenham a ver com o resto do mundo. Acho que no parágrafo acima consegui mostrar que essa preocupação com a pessoa é universal, mas isso não é tudo. Mia Couto fala da África, mas fala também do ser humano. Em muitas situações que retratam o seu continente, é possível sim ver algo em comum com o resto do mundo. Mesmo quando o autor retrata uma realidade tipicamente africana, passando pela história, mazelas e maravilhas da região, isso não impossibilita o entendimento e reflexão do leitor.

Em um texto específico do livro, há um encontro da cultura brasileira e africana – “Sonhar em casa”. A intervenção fala sobre a importância de Jorge Amado para vários escritores africanos. Uma homenagem realmente muito bonita. Vale ressaltar que esse não é o único momento do livro em que o Brasil e África se aproximam: Somos unidos pelo idioma (português), além da colonização, o que faz com que tenhamos uma história em comum a dividir com o continente

 Mas, e se Obama fosse africano?

O texto que dá nome ao livro é o último ensaio apresentado ao leitor, e foi um artigo feito para o jornal Savana, de Maputo, ou seja, foi o único texto que não foi preparado para ser dito oralmente e sim para ser lido em um jornal. Por que o texto foi escolhido para ser o título do livro?

Acho que ele traduz, em suma, a linha estrutural de todo o livro. A própria pergunta já carrega consigo alguns sonhos e expecativas. Obama foi o primeiro presidente negro dos Estados Unidos e isso quebrou, além disso, o presidente levava com ele as promessas de mudança e novo futuro para os Estados Unidos. É, basicamente, o mesmo desejo que Mia Couto faz para a África – a esperança de um futuro bom. As críticas, ponderamentos e incertezas também não escapam no todo da narrativa.

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras

Preço: R$35,00

Autor: Mia Couto

Páginas: 208