Meu primeiro livro do Neil Gaiman não me deixou uma boa impressão. Ouvia gente falando muito bem do autor, de como ele era um dos grandes nomes da literatura fantástica atual e tudo mais, mas Coraline não conseguiu me cativar, embora eu seja obrigado a admitir que as conversas com aquele gato do livro são um barato (aliás, conversas com gatos são recorrentes na literatura e costumam ser bastante interessantes: Nakata em Kafka à beira-mar, Alice com o gato malandrão e sorridente no País das Maravilhas; William Burroughs conversando espiritualmente com os seus bichanos em O gato por dentro… OK, [Fim do Off-topic])

Pensei novamente e acho que acabei encarando o livro não como literatura infanto-juvenil que ele é, e, para vencer minha primeira (e superficial) impressão, resolvi encarar Deuses americanos. O resultado dessa leitura pode ser constatado ao longo dessa resenha.

Deuses americanos é um livro muito bom, Gaiman conseguiu criar um plot bem amarrado e significativo para nossos tempos. O american way of life encontra uma dúbia visão de si, que oscila entre uma familiaridade com fast foods, com as famosas rodovias americanas e as típicas cidadezinhas interioranas; e uma ironia sutil (talvez até demasiadamente sutil) contra uma certa impessoalidade e desencantamento da vida moderna.

Há que se criticar a própria leitura, por isso é que, em tempo, se diga: Deuses americanos não tem o american way of life como tema principal de sua história. A meu ver, Gaiman se debruçou mais intensamente sobre o desencantamento automático e racional demais da modernidade. Acontece que boa parte desse desencantamento e dessa modernidade tem seu nicho na América do Norte.

O livro conta a história de Shadow, um ex-presidiário que saiu da cadeia e encontra sua mulher morta e sua oportunidade de emprego terminada. É aí que surge Wednesday e lhe oferece um trabalho como seu guarda-costas. Shadow acaba aceitando o trabalho e embarca em uma jornada frenética onde os deuses do velho Mundo estão à beira de um conflito com os “novos” deuses.

As mitologias sobre as quais se centrava boa parte da vida das civilizações antigas, tais como as já clássicas grega, nórdica e egípcia; se tornam cada vez mais distantes no tempo, perdem seu sentido em meio a uma realidade cada vez mais racional, tecnológica, científica, onde elementos tais como o computador, televisão e carros se entranharam no cotidiano de maneira violenta, ocupando espaços onde outrora figurava o panteão de divindades as quais se dedicavam sacrifícios, pedidos de perdão e de graças.

Gaiman dá personalidade aos deuses, coloca falas de pessoas comuns em suas bocas, os veste com roupas corriqueiras, lhes torna humanos em alguma medida, conquanto misteriosos poderes permaneçam latentes em cada um de seus atos e em falas proféticas esparsas. Ao longo dos Estados Unidos, Shadow empreende uma viagem onde vai conhecendo diversas divindades dos panteões antigos incorporados aos nuances da vida moderna.

Apesar de parecer “sacrílego” falar sobre várias divindades (deve haver puristas ou fãs de mitologia que não gostaram das versões ‘gaimanianas’ de seus deuses, mas isso é inevitável), o autor foi ousado o suficiente para usar de idiossincrasias para dar vivacidade aos personagens, preservando características marcantes sob uma roupagem nova, diferente e decadente, pela própria condição de “atualidade ancestral.”

Deuses americanos é um livro que fala sobre a humanidade do divino, não é ácido em suas críticas, mas não deixa de ter um gostinho de insatisfação, inscrito na vivificação de um tempo que não existe mais, e por mostrar de maneira nostálgica como havia um carisma especial nos deuses de outrora, ainda mais quando colocados frente à implacabilidade e aspecto cinzento e morno dos atuais. Isso pode ser paradoxal, mas é justamente esse um dos trunfos do confronto proporcionado pela narrativa de Gaiman.