Dando continuidade às lições borgeanas sobre História e Historiografia, me utilizo do conto A Aproximação a Almotásim como escopo para mais uma reflexão sobre a “natureza” histórica da humanidade e as implicações dessa a historiografia enquanto ciência e enquanto saber, que ajuda a compreender também filosoficamente as peculiaridades do homem e do tempo.

A Aproximação a Almotásim foi publicado originalmente em 1936 e posteriormente, em 1944, incorporado a célebre coletânea Ficções. O conto mantém a linguagem intrincada de Borges do início ao fim. Nesse conto, Borges se aproxima mais de uma espécie de ensaio ou resenha de um livro imaginário, escrito pelo advogado indiano Mir Bahadur, cujo título é o do próprio conto em questão. Resumindo a história, Borges nos diz que depois de conflitos entre muçulmanos e hindus, o protagonista estudante, que acabara de se envolver na morte de um sujeito (não se sabe se hindu ou muçulmano), começa a peregrinar pelo Industão em busca de outras perspectivas de vida após o incidente.

A jornada do jovem talvez se aproxime um pouco de um bildungsroman daqueles que a literatura alemã aprendeu a cultivar com maestria, pois após andar um bocado, conversar com uma porção de pessoas, o estudante (inominado) parece caminhar em direção a revelação de que os homens não são essencialmente infames, mas que refletem uma “claridade”, oposto da infâmia, que vai se tornando mais tênue conforme de afasta de sua fonte; logo:

“Em algum ponto da Terra há um homem de quem procede essa claridade; nalgum ponto da Terra está o homem que é igual a essa claridade.” (p. 42)

A claridade seria personificada justamente em Almotásim (não que ele fosse necessariamente uma pessoa, mas um ente em acepção mais ampla). O detalhe que me leva a escrever essa coluna (e a tentar extrair do conto uma “lição borgeana”) é justamente a leitura de Borges sobre a influência de Almotásim:

“Já o argumento geral [do livro de Bahadur] se entrevê: a busca insaciável de uma alma através dos tênues reflexos que esta deixou em outras. (…) À medida que os homens interrogados conheceram mais de perto Almotásim, sua porção divina é maior, mais se acredita que são simples espelhos.” (p. 42)

No livro Apologia da História ou o Ofício do Historiador, Marc Bloch define a História como a “ciência dos homens no tempo”. Ora, dessa inferência retira-se o corolário de que a História sempre será a História dos homens, das suas existências no tempo. Logo, partindo do presente para auscultar o passado, o historiador se utiliza (não somente como motivação) o “universo” criado pelo homem, seja através de rastros, utensílios, livros, depoimentos, documentos, objetos arqueológicos etc.

Tal como o estudante que procura Almotásim através dos homens, também o historiador, como interessado no “universo” dos homens, se vale das marcas humanas para construir seu saber. Não se trata, contudo, de uma aproximação essencialmente espiritual, visto que há um amplo quinhão de materialidade, pesquisa e pressupostos teóricos, metodológicos e científicos orientando a empresa do historiador, mas não deixa de sê-lo na medida em que ele lida com elementos produtos do homem, intencionalmente produzidos ou não.

A comparação com Borges talvez soe estranha quando se trata das palavras “porção divina”, mas o próprio autor trata de depurar esse fato:

“Na versão de 1934 (…) o romance decai em alegoria: Almotásim é emblema de Deus e os pontuais itinerários do herói são (…) os progressos da alma na ascensão mística.” (p. 43)

Borges, além de criticar uma leitura que, a seu ver, seria rasa; ressalta o ponto em que quis me deter: a dimensão humana da própria espiritualidade. Como disse, aproximar-se de Almotásim, ou na lição da vez, da verdade histórica, implica reconhecer a dimensão humana tanto da pesquisa quanto do objeto de pesquisa, afinal, quer-se fazer uma história dos homens (e para os homens) e não uma história das coisas (embora haja quem não partilhe dessa opinião).

BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Carlos Nejar. São Paulo: Abril Cultural, 1972.