David Grossman é, sem sombra de dúvida, um dos maiores escritores israelenses vivos hoje. ‘Ver: Amor’ é seu livro mais conhecido e, também, seu opus magnus. Mas ele não ocuparia o posto que ocupa no panteão da literatura sabra se fosse um one hit wonder. E ‘Alguém para correr comigo‘ é prova mais do que suficiente de que não o é.

Em primeiro lugar, o livro é uma magnífica viagem pelas ruas de Jerusalém. O modo como Grossman reconstruiu a Cidade Sagrada é sutil, ele utiliza como matéria prima as camadas mais profundas da vida da conflituosa cidade, coisas que passam invisíveis não só para os turistas, como também para a maioria de seus habitantes. É como se, por baixo do pólo turístico, centro religioso e do motivo de conflitos sangrentos, ele tivesse descoberto um mundo mágico, único. Mas, de certa forma, ainda plausível.

Não que ele se importe muito com o fato de o enredo ser plausível ou não. Em certos momentos é quase impossível acreditar que a história está tomando o rumo que desenha-se diante dos olhos do leitor. E isso já no começo: Assaf, um jovem de 16 anos, está sozinho em Jerusalém enquanto seus pais viajam para os Estados Unidos, para onde foram chamados às pressas por Réli, irmã mais velha do protagonista. Para que o garoto ganhasse algum dinheiro e tivesse o que fazer, seu pai arranjou-lhe um emprego na prefeitura. E justamente esse emprego – enfadonho e um tanto idiota – é que põe tudo em movimento.

Assaf acaba sendo encarregado de encontrar os donos de um cachorro perdido, devolver o cachorro, preencher o formulário 76 e cobrar uma multa. O método é simples, apesar da contrariedade inicial do menino. Ele deve segurar a coleira e deixar o animal correr livremente pela cidade, pois ele há de ir para casa.

As coisas, no entanto, não seguem exatamente o esperado. Primeiro Assaf é arrastado para uma pizzaria, onde acaba sendo quase que obrigado a comprar uma pizza. Depois disso ele vai parar em um mosteiro, inusitadamente plantado quase no centro da cidade. Lá ele conhece Teodora e descobre que o cão é, na verdade, uma cadela, chamada Dinka.

Teodora é, possivelmente, uma das personagens mais singulares já criadas. Ela é uma freira grega que há cinquenta anos não deixa o mosteiro, enquanto espera peregrinos que nunca chegam. Sua maior alegria na vida são justamente as visitas de Dinka e sua dona, Tamar – uma garota um tanto quanto impetudosa, mais ou menos da idade de Assaf, e que há algum tempo não aparece.

Depois de uma conversa com tons um tanto oníricos, Teodora não só roga a Assaf que salve Tamar de algo que ela não sabe ou não quer falar exatamente o que é, mas também instila nele o desejo de conhecer a menina.

Ao mesmo tempo o leitor começa a ser apresentado a Tamar. Ela parece ter uma espécie de missão, algo que no começo não fica bem claro. Parece querer salvar alguém e, para isso, precisa viver nas ruas e cantar, chamar a atenção de alguém que ela não sabe exatamente quem é. O plano é perigoso, mas meticulosamente planejado.

As duas histórias serão magistralmente costuradas. Assaf buscando Tamar, no presente. Encontrando muitas personages peculiares (nenhuma como Teodora, é verdade, mas ainda sem ela a galeria das criações de Grossman para esse livro é impressionante) e sofrendo com coisas inesperadas, ele vai se apegando cada vez mais a Dinka, e se interessando cada vez mais pela perspectiva de conhecer Tamar. Ela, aliás, tem sua história iniciada um mês antes, começando a se preparar para sua jornada e iniciando-a.

Em certo ponto as duas tramas convergem, inexoravelmente. Os resultados não são necessariamente supreendentes. Na verdade, talvez sejam até um pouco óbvios. Mas entre os pontos de partida e de chegada, existe um abismo enorme, difícil de ser adivinhado até pelo leitor mais sagaz.

Apesar da militância política de Grossman, o livro evita assuntos políticos. Nenhuma, ou quase nenhuma, menção ao conflito entre Israel e Palestina é feito. Do mesmo modo, a dicotomia cultural entre judeus e árabes é deixada de lado. De um lado, pela opção de Grossman de não abordar política em suas obras literárias*. De outro, por ser um livro sobre a adolescência.

Alguém para correr comigo‘, aliás, narra uma espécie de ritual de passagem, uma iniciação à vida adulta. Não à toa, o livro foi dedicado para os filhos do autor. Trata, obviamente, dos conflitos da juventude, das dificuldades de tornar-se, compulsoriamente, algo sobre o qual sequer se imagina algo.

Faz isso, porém, de um modo surpreendentemente otimista. Otimista, mas não tolo, é importante destacar. Por mais determinadas que as personagens sejam, por mais que não vejam, em suas obstinações juvenis, o fracasso como opção, ainda assim reconhecem a existência de um lado negro na vida. O fato é justamente que aprendem a aceitar e a lidar com isso.

* O livro foi escrito em 2000, antes que um dos três filhos de Grossman, Uri, morresse. Isso aconteceu em 2006, na Guerra Israelo-Libanesa. Depois disso essa regra caiu por terra e, em A mulher foge os conflitos entre Israel e o resto do Oriente Médio são abordados abertamente.

Alguém para correr comigo

de David Grossman,

tradução de George Schlesinger.

440 páginas

R$ 63,50.

 

Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras