O Luciano é tão entusiasta do escritor israelense Amós Oz que eu fiquei curioso por conhecer a literatura dele e tive que ir conferir o porquê disso. Depois de ler A caixa-preta pude entender um pouco a razão de tal sentimento. Não é só porque se trata de literatura israelense (vocês já devem ter percebido que o Luciano é fã da literatura que trata de judeus, conflito entre Judeus e Muçulmanos e adjacentes), mas porque a literatura de Amós Oz é de qualidade mesmo.

A caixa-preta é um livro de 2003, e conta a história de um romance que ocorreu há algum tempo, mas que resiste a terminar por completo. As lembranças de seus prazeres (e de seus dissabores) reverberam ainda na vida não só do casal em questão, Ilana e Alexander Guideon, mas também no filho do casal, Boaz, e nas vidas dos que estão a eles ligados, como o então marido de Ilana, Michel Sommo, entre outros.

Não se engane, A caixa-preta não é um livro cujo cerne é o romance. A relação entre Ilana e Guideon é somente o escopo através do qual Oz procura entrelaçar outras questões e perscrutar conflitos bem mais amplos e profundos. A argúcia de Oz está justamente na maneira como ele constrói a história, a arquitetura do enredo e a forma lhe permitem explorar vários pontos de vista simultaneamente e flanar de um e outro lado da questão, alçando entendimentos e pontuando intrincadas questões em nível micro e macro

Imagine que uma caixa-preta fosse aberta e você tivesse acesso aos registros que ela contém: bilhetes, cartas, notas breves, telegramas, anotações etc. Essa é a organização do romance de Oz, o enredo se dá pela junção de várias cartas, o narrador são os próprios personagens se correspondendo uns com os outros.

Nas ruínas da relação de Ilana e Guideon subsiste ainda uma afeição, ainda que misturada com ressentimentos. A situação em que eles se encontram, Ilana em Israel e Guideon nos Estados Unidos, faz com que da prosa de Oz apareçam traços mais nítidos dos sentidos com que ele traduz sua experiência em relação aos conflitos da região. Guideon construiu sua carreira pesquisando o fanatismo, de modo que Oz se aproveite disso para expor alguns absurdos presentes nos extremismos de ambos os lados do conflito, tanto de judeus quanto de muçulmanos (as notas de Guideon sobre o fanatismo são um dos pontos altos do livro, na minha opinião).

A militância de Oz no movimento criado por ele, Paz Agora (Shalom Akhshav), também pode ser entrevista no romance. Guideon, em sua cidadania americana, envia dinheiro para que Michel Sommo, o então marido de sua ex-mulher, possa cuidar das expensas da casa e da família. O detalhe é que Michel deixa de ser tão “principesco” quanto se apresentava anteriormente a Ilana, para se tornar militante de sua fé judaica de uma forma que, ao que fica sutilmente sugerido na trama, tende a se tornar extrema, quiçá fanática.

Guideon, mesmo financiando parte da vida da família da ex-mulher, não se tornou uma pessoa melhor, sua ganância e suas ambições o levaram a se tornar um outsider, alguém que enxerga de longe, emite julgamentos supostamente sábios, mas que se revestem de um academicismo longínquo, que se encontra fora das reais condições de vida dos sujeitos que habitam a zona de tensão do conflito. Ele parece ter incorporado a frieza e o distanciamento que se produziu entre ele e sua mulher e ele e sua terra.

Ilana e Boaz representam outro grupo, são pessoas simples que vivem suas vidas apesar das confabulações e das abstrações e teorias que são produzidas constantemente para explicar o conflito. As rememorações nostálgicas de Ilana acerca de um tempo em que as coisas eram mais simples ou a busca singela de Boaz por “simplesmente” viver, cultivar sua terra, ter sua casa e um quinhão de autonomia (que consegue a duras penas) expressam o descompasso entre o que se vê e diz e o que se vive de fato no âmbito cotidiano.

Em A caixa-preta, Oz consegue matizar o conflito entre judeus e palestinos e perscrutar suas várias faces, faces essas que envolvem interesses, geopolítica, dinheiro, aspectos étnicos e culturais tanto quanto a questão religiosa. Explorar esse prisma deixa a complexidade da situação vir à tona e desconstrói a dicotomia tacanha que reduz o conflito a “mera” expressão de fanatismos. As desigualdades e tensões são vivas e históricas, se encontram no plano humano e precisam ser enxergadas como tal. A serenidade de Guideon ao fim da vida, gozando da presença de seus familiares apesar dos pesares mostra como a lucidez não precisa ser póstuma, seja em âmbito individual, seja em âmbito coletivo.