Fazia tempo que eu não pegava uma peça de teatro para ler. Lembro de ter lido algo do August Strindberg há algum tempo, mas esparso demais para contar como uma leitura mais afeita. Quando terminei de ler Um bonde chamado desejo, do autor estadunidense Tennessee Williams (de uma sentada), lembrei de como é agradável acompanhar o ritmo peculiar das composições para o teatro.

A princípio a apresentação “brusca” dos personagens logo na primeira página em forma de lista (uso aspas em brusca porque não é realmente brusco, é próprio da literatura destinada a ser peça) assusta um pouco, pois parece que não daremos conta de lembrarmos dos personagens, visto que é costumeiro que o autor nos acompanhe pela mão quando da introdução de um novo personagem. Não se preocupe, a história dá conta de situar o leitor tranquilamente.

As descrições de cenário e das impostações de voz, das características dos personagens, do fundo musical, dos arranjos de cena para a representação, com o perdão do trocadilho, “teatralizam” a história, fazendo com que de cada fala e de cada personagem e situação brote uma eloqüência concisa, que lapida a linguagem e os diálogos (o próprio corpo do texto) e que torna ainda mais emblemática cada passagem.

Na peça de Tennessee Williams ficamos conhecendo o casal Stanley e Stella Kowalski, que moram em Nova Orleans, no primeiro andar de um sobrado humilde e apertado, desfrutando de uma vida conjugal que parece a primeiro momento quase ideal. O andar de cima é habitado pelo casal amigo deles, Steve e Eunice Hubbell, que partilham de praticamente as mesmas opiniões e modo de vida dos Kowalski. A situação está bastante estável até que a irmã de Stella, Blanche DuBois entra em cena, descendo do bonde de nome Desejo, e mudando toda a dinâmica da vida na pacata (porém repleta de blues) Nova Orleans.

Um passado obscuro antecede a vinda de Blanche para o ninho de amor do casal Kowalski, passado esse que vai sendo descascado ao longo da trama, ao mesmo tempo em que vamos conhecendo tanto a própria Blanche como Stanley e Stella, os três vértices desse triângulo de relações tensas e dúbias.

Blanche transpira nobreza e finesse, mesmo que não saibamos até onde vai sua autenticidade e apesar de ter vindo para Nova Orleans por conta de ter perdido Belle Reve, a propriedade da família DuBois, onde ela e Stella passaram sua infância. O contraste existente entre os modos esbanjadores de Blanche e sua situação pecuniária esconde um mistério que Stella, em sua inocência, não vê (ou não quer ver), mas que seu marido Stanley, rústico mas perspicaz, quer desnudar desde sua indisposição quase imediata com a cunhada.

O desenvolvimento dos personagens é o ponto forte do livro, as recorrências dos diálogos torna o conjunto dinâmico e delicioso de ler. Pela frequência dos diálogos os personagens são aprofundados a partir de suas próprias falas, e uma crescente de tensão vai se avolumando ao longo de toda a trama. O passado de Blanche vai vindo à tona simultaneamente ao acirramento das diferenças conjugais (resolvidas essas com fogosas noites de amor e espetáculos pitorescamente bizarros como os gritos selvagens e desconsolados de Stanley: ‘Ste-e-e-e-e-e-e-lla! Ste-e-e-e-e-e-e-e-lla!).

Tennessee Williams realmente acertou a mão, Um bonde chamado desejo é uma história redonda, bem amarrada, de uma beleza arrebatadora. Contrapõem-se estilos de vida muito diferentes, concepções de mundo muito distintas e trajetórias potencialmente explosivas. Basta ler algumas falas de qualquer conversa entre Blanche e Stanley para saber que a menor fagulha pode fazer todo o decoro e os bons modos irem pelos ares.

Blanche vive numa espécie de conto de fadas do qual não consegue se desvencilhar, se agarra a ele de forma melancólica, negando-se a admitir que o mundo cavalheiresco de seus sonhos não existe mais. Nesse sentido ela se assemelha um pouco à Norma Desmond, de Crepúsculo dos deuses (aquela obra-prima de Wim Wenders). A vida boêmia e romântica que levava anteriormente a levaram a sua condição atual, não há mais espaço para o “mundo” que ela viveu, provavelmente nos “loucos anos 20”. A realidade é bem mais dura e rude do que ela pode suportar, tipos como Stanley, embrutecidos, estão mais aptos a sobreviver nesse ambiente.

Não à toa que os sentimentos em relação à Blanche variem tanto, vão do asco e ódio, podendo-se chamá-la de “duas caras”, víbora ou manipuladora interesseira; até a pena, pois se trata de uma pobre-diabo que se perdeu nos trilhos da vida. O simbólico trecho que lhe explica a condição é de expressividade metafórica singular:

“Blanche – Você está falando é do desejo animal…é só desejo!…nome daquele bonde desconjuntado, barulhento, o ferro-velho que passa sacolejando pelo French Quarter, subindo uma ruela estreita e descendo outra…
Stella – E você nunca andou nesse bonde?
Blanche – Ele me trouxe até aqui…onde não me querem e onde me sinto envergonhada de estar…” (pp. 76-77)

WILLIAMS, Tennessee. Um bonde chamado desejo. Tradução de Beatriz Viéga-Faria. Porto Alegre: L&PM, 2010.