Não conheço muito bem o conceito de entropia, mas sei que se refere à quantidade de energia térmica que um sistema isolado perde sem que ela se transforme em trabalho. Pynchon estabelece um paralelo entre esta teoria e a teoria da comunicação. Há dois tipos de entropia, ele afirma, frase essa colocada na boca de um de seus esquisitíssimos personagens, John Nefastis, quase distraidamente, deixando o leitor se perder em meio ao mistério que percorre o livro. O livro, naturalmente, vai se preocupar apenas com a entropia da comunicação.

Acontece que esse procedimento, típico do autor, consegue simular exatamente os efeitos dessa perda. Seu romance, apesar de curto, condensa muita informação e como uma máquina, tem uma parte de sua informação simplesmente desperdiçada. É difícil explicar em pouco espaço onde está exatamente a genialidade do autor, como essa máquina funciona. Mas me parece um procedimento que vai funcionar apenas conectando-se ao leitor; uma máquina falha, que se deteriora (embora na termodinâmica o conceito de caos não seja negativo — e, veremos, nem para Pynchon) e precisa disso para continuar em funcionamento. Ou seja, o romance é uma máquina que vai obedecer exatamente às mesmas leis proferidas por Nefastis, mas só depois que sua engrenagem começa a funcionar com o leitor. Procedimento político por essência, com certeza. Uma redefinição do papel da literatura, resposta para todos aqueles que não cansam de descobrir as crises das definições e emperram quando precisam estabelecer conceitos positivos (“a literatura é:”). Porque afinal, o que é um livro?

Há, por estranho que pareça, inúmeras respostas para essa pergunta. Mas Pynchon prefere dizer que um livro é um produtor de caos, nunca uma simulação da realidade — mesmo que se recorra ao realismo fantástico (penso em boa parte da literatura latino americana), o livro nunca vai passar de um mero retrato, um instantâneo que engessa para sempre os personagens naquela situação. A literatura não pode ser um instrumento de estabelecimento do mundo, algo conservador mesmo quando procura ser revolucionário. Um livro deve sempre modificar alguma coisa, embora isso só possa acontecer justamente por essa produção de caos, ou melhor dizendo, introduzindo um desconforto em relação à realidade que a literatura clássica não é capaz. Pynchon não cansa de dizer que o mundo é muito mais do que aquilo que vemos distraidamente. Há uma intensa luta sob sua pele e é ela que determina como vemos e pensamos a realidade.

Assim, antes de mais nada, Pynchon toma o caminho de nunca fornecer definições acabadas sobre seus personagens. Eles estão sempre em transição, e muitas vezes em deslocamento também. Nesse ponto, o autor lembra bastante o conceito de pós-modernidade de Bauman, mas antes de ser algo negativa, essa liberdade de personalidade ajuda a máquina a funcionar. Por isso, causa estranheza nos leitores mais acostumados aos procedimentos clássicos dos escritores; o que lemos no começo pode deixar de ser verdade dali há algumas páginas. Nunca vai existir aquele perfil psicológico dos personagens que vai servir como guia para o leitor — mais do que uma guia, esses perfis são o princípio da realidade se estabelecendo e negando as possibilidades infinitas que cada momento traz dentro de si. É o reino das possibilidades estabelecidas.

Mais do que um mero procedimento de escrita, isso é uma leitura da realidade. Quem disse que o mundo que conhecemos é o único possível? Ele pode ser transformado a cada segundo, mesmo que seja sempre mais difícil em igual medida. Esse caos produzido por seus escritos é uma máquina que se conecta diretamente ao leitor (e nesse caso, o leitor é produtor de lógica, ao menos tenta ordenar o caos e destruir as possibilidades…). Pynchon dá movimento a mecanismos que nós nem pensamos existir em nós, primeiro provocando esse efeito conservador, de ordenação da realidade, em seguida como propagadores do caos (involuntariamente, no entanto), porque o mesmo princípio de entropia funciona aqui. A informação não se transforma em trabalho (no caso seria a modificação do mundo), mas acumulada, pode gerar um caos transformador. É inevitável. Porque vai chegar um momento em que a mera perda vai se tornar uma informação também, nós já vemos isso acontecer — com o perdão da palavra, a própria internet colabora para isso ao permitir que todos possam se pronunciar, tendo algo a dizer ou não, simulacros de informação. Enfim, a guerra de Pynchon não é contra o capitalismo ou neoliberalismo ou qualquer outro sistema político-econômico, sua revolução é contra o princípio da realidade, o que convencionamos chamar de verdade.

É comum ler comentários sobre Pynchon que falam de seus personagens absolutamente perdidos em meio ao dilúvio de informação, incapazes de se orientar e estabelecer um padrão de comportamento válido para sempre. Mas não creio que seja o caso; porque antes de tudo trata-se de um autor pós-moderno, para quem a busca da personalidade é fato irrelevante. Não é preciso compreender como funciona um computador, basta saber operá-lo; a busca de sentido na vida não faz da parte das nossas prioridades atuais. Preferimos aproveitar os benefícios da ciência a entender como ela significa profundamente. Não há mal algum nisso, e Pynchon não lamenta a complexidade do mundo, quer apenas mostrar que podemos modificá-lo.

Como explicar a paranóia, no entanto? Porque estamos acostumados a reagir negativamente quando essa palavra é mencionada, podemos deixar passar o que Pynchon está querendo mostrar. Se a realidade nunca é dada, mas construída por alguns poderosos e devemos antes de tudo brigar por seu status, a paranóia é o fio de Ariane nesse labirinto que pode nos guiar.  Ou seja, pode-se não ter certeza que algo está errado, nem por onde começar a questionar, mas fica uma enorme dúvida. Mesmo que o conceito clínico de paranóia estabeleça que o “doente” se coloca como centro de tudo, aquele único a ser vigiado pelo mundo (que é composto apenas por espiões), o autor abandona essa idéia. Paranóia aqui deve ser entendida não como uma patologia, mas como o único instrumento de que dispomos para perceber esse movimento escondido das conspirações que constroem a verdade.

Porque há uma série de coisas que não podem ser totalmente esclarecidas, mais uma vez, não como metáfora mas como conhecimento aplicado, surge uma teoria da ciência para esclarecer um aspecto de suas formulações: o princípio da incerteza. Werner Heisenberg estabeleceu em 1927 que é impossível definir a posição de um elétron e sua velocidade ao mesmo tempo. Porque o elétron reage aos instrumentos de medição e sofre uma alteração impossível de ser medida, logo, não há no que nos apoiarmos para definir esse desvio, que precisaria ser medido antes mesmo de iniciarmos a medição. Isso acontece quando tentamos definir a velocidade do elétron e, paralelamente, quando queremos dizer sua posição. As duas medições se complementam e agem inversamente sobre a outra, ou seja, se definimos a posição, menos sabemos sobre a velocidade e vice-versa. Há inúmeras implicações dessa teoria na física quântica e no cotidiano de todos nós, mas aqui indica apenas que quanto mais os personagens abordam a história, mais se distanciam do que de fato está acontecendo no momento que vivem e, à medida que buscam esclarecer onde as conspirações  atuam, mais perdem sua história. Aqueles personagens que conhecem a história das conspirações, de alguma forma estão fora delas, e aqueles que participam nunca são capazes de explicar nada.

Pode-se apenas deduzir o que se passa, um exercício mental, a paranóia.

Sobre o autor: Marcelo Gabriel Delfino é sociólogo e leitor curioso, tenta com todas suas forças montar um projeto de mestrado falando de um seus escritores favoritos.