Muitas pessoas vivem da noite e são vítimas dos seus mais incríveis encantos: pode entregar-se a disfarces, ser outro em si mesmo, contar vantagens, largam-se os ternos e as preocupações – os terrores diurnos de uma vida citadina. Em muitas noites tudo pode ser uma rotina, mas existem algumas noites, aquela noite, em que dizemos “será inesquecível”. Essa noite memorável está nas páginas de Após o anoitecer do, autor japonês Haruki Murakami, uma obra cheia de personagens com suas próprias histórias – que podem se cruzar ou não – numa madrugada quase ordinária nas ruas de Tóquio, onde pessoas podem morrer, viver ou amar.

Mari Asai é uma jovem que fugiu de casa para passar a noite fora, lendo livros, tomando café ou chá e tentando esquecer dos seus problemas familiares. Acontece que ela é a irmã mais nova de Eri, uma jovem de beleza imaculada – que desde muito cedo estampa revistas de moda e comportamento – que um dia decidiu dormir e nunca mais acordou. Ela não está em coma e muito menos morta. Apenas dorme. No meio da noite, Mari encontra Takahashi, um jovem músico de jazz que ela conheceu há tempos durante uma viagem e que representará muito durante suas aventuras nas poucas horas madrugada adentro.

Murakami trabalha seus personagens de várias maneiras, enquanto em muitos momentos ele explora o óbvio de um relacionamento entre irmãs, que aparentemente não se dão, até criar mistérios e um plano de fundo totalmente tocante para um jovem falador que quer mudar de vida – isso gera quase uma superficialidade na exploração dos sentimentos, um dos traços mais envolventes do escritor, contudo creio que nessa obra veio a calhar o risível ao invés de uma imensidão. Entre os encontros casuais, o leitor será empurrado para uma trama paralela envolvendo a máfia chinesa e a prostituição em Tóquio, um misógino de meia idade e uma ex-lutadora de luta livre que cuida de um motel. Todas podem se cruzar, todas podem dar errado e muitas são tristes e engraçadas. E cada um representando um personagem da noite, aqueles que usam máscaras, aqueles que só são vistos à noite e muitos que nunca são vistos mas sempre estão em quase toda parte.

Parece pouco? Experimente seguir as trilhas que o autor sugere em cada capítulo, quando diz que em tal bar estava tocando tal música, de tal álbum, de tal ano. É quase mágico ouvir Five Spot After Dark e ler os diálogos entre Mari e Takahashi. E imaginar um homem malhando ao som de Bach às 3 horas da manhã ganham outro significado. A cultura pop pulsa como as descrições de neon e das noites frias da cidade – o talento de Murakami de escrever sobre coisas simples de maneira simples e que são irrepreensíveis.

Do que parecia ser um simples encontro que resultaria em um possível amor, o leitor é sugado para um thriller de comportamento e humanidade. Após o anoitecer é considerado um dos livros mais fracos do autor, mas o considero diferente, a ovelha negra que tem muito do estilo de Murakami – a cultura pop, as músicas, o pulsar dos anos 80 – e que mesmo sendo menor já é maior do que muito do que vemos por aí.