Durante a Segunda Guerra Mundial, em meio às conturbadas fronteiras entre o Reino da Iugoslávia e Hungria vivia um garoto chamado Andreas Scham. Saíra ao pai, sendo um menino extremamente inventivo e sensível: em alguns momentos chegou a crer-se imortal e temer pelo futuro, pois apesar de sua capacidade de enganar a morte, só podia fazê-lo por si – e mesmo que sua mãe vivesse duzentos anos, seria pouco.

Andreas é a personagem central da novela Jardim, Cinzas do iugoslavo Danilo Kiš. Um livro curto mas extremamente criativo, em que fatos históricos, fantasias infantis e referencias literárias misturam-se em uma poética tão complexa quanto cativante.

Se por vezes é possível lembrar-se dos contos do polonês Bruno Schulz, não é tanto por causa do jovem Andreas, mas por conta de seu pai, Eduard Scham. Uma espécie de louco genial, de profeta-poeta, Scham é responsável por muitas das penúrias de sua esposa e filhos, que tiveram de mudar-se de um lado para outro e passar fome.

Essas dificuldades, aliás, também obedecem a uma construção de ordem poética. É a fome que faz com que o garoto esqueça a morte, é a fome que faz com que ele e sua mãe traduzam a língua da chuva em poemas.

A culpa imputada a Eduard, porém, não é por ele ser um mau pai ou marido – mesmo que o seja –, mas sim por conta das circunstâncias. A história acontece, afinal, durante a Segunda Guerra Mundial, época de acirrados e perigosos fascismos tiveram lugar, para os quais o grande livro do sr. Scham – um guia de trens em que as linhas e horários perderam espaço para numerosas notas de rodapé com referencias místicas, mitológicas e históricas (entre outras, que Kiš passa mais de uma página enumerando) – é alvo de repúdia, bem como suas pregações a respeito da necessidade de invenção de uma nova espécie de religião.

Apesar disso o livro é insuspeitamente leve. Mesmo durante seus piores momentos, é impossível não trair-se com um sorriso, quiçá pela forma em que Kiš escreve – demonstrando suas habilidades de poeta, mesmo na prática da prosa – ou pelos absurdos borgianos que retrata, com toques de Schulz e Kafka.

O maior defeito do livro não se deve a obra em si, mas ao fato de estar esgotada no Brasil. Pode, contudo, ser achada com certa facilidade em sebos e bibliotecas.

Jardim, cinzas

Autor: Danilo Kiš

Tradução: Heloisa Jahn

Editora: Companhia das Letras

Páginas: 208

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