Se você perdeu a primeira parte dessa resenha, pode encontrá-la aqui.

A segunda parte do livro é intitulada 1985 e é a visão de Burgess acerca do que uma cacotopia mais apurada do futuro seria, diferente, em sua opinião, do mundo criado por Orwell.

No mundo de 1985 não existe o Grande Irmão, mas existe uma entidade ramificada que exerce poder quase totalitário a respeito de diversos aspectos da realidade, o sindicato. São eles que regulam os regimes de trabalho, a gestão da produção e as reivindicações sociais que porventura surjam do seio das fábricas e dos demais locais onde se encontram trabalhadores.

Na cacotopia, os sindicatos deixaram de ser órgãos de representação dos trabalhadores e de reivindicações democráticas para, por conta de uma hipertrofia e burocratização, se tornarem aparatos legais de coerção dos trabalhadores, indiscriminadamente, deturpando em vários sentidos as razões que os tornavam válidos. As reivindicações dos sindicatos se tornaram opressivas na medida em que os clássicos responsáveis pela exploração dos trabalhadores, que outrora eram seus adversários, se enfraqueceram e alteraram toda a correlação de forças.

O local onde se passa a história é Tuclândia (nome pelo qual atende então a Inglaterra). O protagonista da história é Bev Jones, um sujeito que trabalhava em uma fábrica de chocolate e que por conta da greve e do regime de gestão sindical, fica impossibilitado de trabalhar, ainda que suas inclinações difiram das do sindicato e dos grevistas. Ele possui uma filha, chamada Bessie e uma mulher, que morre em um incêndio logo no início do livro, por causa de uma greve dos bombeiros.

As greves são eventos constantes no universo de 1985, eles deixaram de se embasar em ideais concretos e em tradições contestatórias históricas, de modo que o que as norteia e as faz explodir são banalidades quaisquer. Boa parte dos trabalhadores que aderem às greves são retratados como jovens que desconhecem as causas e as razões de suas lutas, vivendo em uma condição de quase imbecilidade. Essa característica é estereotipada na filha de Bev, Bessie, que mentalmente é um vegetal, sem reação alguma, vivendo alienada a sua realidade, consumindo passivamente as imagens imputadas a ela pela televisão.

Outro dos pontos importantes acerca da realidade de 1985 é a presença de árabes e muçulmanos em diversos locais e situações, o que indica que Burgess compreendeu como uma das possíveis características do futuro a presença árabe no ocidente seria cada vez maior, e se daria apesar da alteridade cultural e política. A força do capital (ainda mais por conta de possuírem poços em tempos de crise do petróleo) lhes outorga a capacidade de se adaptarem apesar dos pesares.

Justamente pela discordância de Bev em relação aos rumos pelos quais anda a realidade que a trama do livro ganha movimento. Diante da situação de supremacia sindical, Bev resolve mover uma cruzada para livrar-se das incumbências e obrigações às quais está atado por conta da representação dos sindicatos. É daí que decorre toda a sucessão de eventos e os questionamentos morais, políticos e filosóficos que Burgess move ao longo da obra.

Na minha opinião, a segunda parte deixou a desejar em relação a primeira. Elas dão a impressão, inclusive, de serem ideologicamente bem diferentes. O livro parece orbitar em torno de um núcleo que tangencia todas as distopias: a liberdade. A busca obstinada de Bev (e de Burgess) por liberdade dá corpo a questões que envolvem boa parte das preocupações pujantes e presentes em toda a História da humanidade, e de maneira talvez mais dramática no século XX. Estruturas de representação política, o Estado, a tecnocracia e a tragicidade que emana desses elementos nesse século é que (des)coloriram as distopias, sejam elas orwellianas, huxleyanas, burgessianas, gibsonianas etc.

Se na primeira parte do livro Burgess explora a historicidade (ou seja, a condição não-universal e não-absoluta) da obra de Orwell, cabe entender que a visão cacotópica do próprio Burgess também está investida de historicidade. Creio que esse é um dos pontos pelos quais a segunda parte de 1985 não funciona tão bem quanto a primeira: mesmo ao criar uma micro-trama, o autor lida com as questões de modo muito abstrato.

A cruzada de Bev é um belo exemplo disso, pois ao encarar uma briga com a verve coercitiva do sindicato, ele toma um caminho de negação per se, sem a apresentação de uma alternativa, ou seja, ele está preso na situação apontada pelo próprio Burgess na primeira parte, a de que ser contra por ser contra pode endossar regimes de opressão na medida em que se perde a essência dos próprios valores, princípios e ideais.

Até onde conhecemos a realidade de 1985, apesar de serem chamados de sindicatos, os órgãos apresentados estão mais para cartéis disfarçados ou grupos semi-mafiosos do que outra coisa. Ou seja, desse sindicalismo deturpado surge a busca pela liberdade, mas em moldes abstratos, a liberdade que Bev procura é mais um conceito do que algo concreto.

Vale notar que em 1978 eventos importantes assomavam o universo de perspectivas com o qual os sujeitos dialogam. O horizonte comunista estava em declínio e o capitalismo assomava agigantado pelo arrefecimento de certos ideais e projetos de sociedade que por tanto tempo tinham encampado a disputa política em nível mundial. Não me parece, portanto, desprovido de sentido que Bev buscasse algo abstrato, distinto do que via ou que já tinha conhecido ou experimentado.

(segundo o site da L&PM, o livro encontra-se, infelizmente, esgotado)