Do fundo do posso se vê a Lua, de Joca Reiners Terron, é parte da coleção Amores Expressos, da Companhia das Letras. A coleção tem uma ideia bastante interessante: vários escritores foram enviados para diferentes cidades do mundo, com a contrapartida de escreverem histórias de amor passadas nesses lugares. A Terron, por exemplo, coube a capital egípcia, Cairo.
E é nesse cenário quase mítico – ao menos no imaginário ocidental – que chega a um desfecho uma história de amor fraterno bastante complexa. Nascidos em São Paulo, William e Wilson são gêmeos idênticos cuja relação sempre foi complicada, até que foi abruptamente interrompida – e, vinte anos depois, é retomada de modo enigmático.
A mãe dos gêmeos faleceu quando estes nasciam – os perigos do parto já avultavam-se durante a gestação, mas perseguida pelos militares, ela não ousava ir a um hospital. Por conta disso, não apenas a mãe dos dois, conhecida como Cleópatra, apesar de esse provavelmente não ser seu verdadeiro nome, morreu, mas William sofreu de hipóxia perinatal, o que lhe legou um desenvolvimento intelectual aquém do de Wilson. Excetuando-se isso e o fato de Wilson desde cedo identificar-se como mulher, não existem diferenças entre os dois.
Foram criados pelo pai, um ator obeso, um tanto quanto paranoico e obcecado, desde o nascimento dos dois, com os mitos sobre duplos e doppelgangers. Na noite em que comemoravam 18 anos, porém, a vida que levavam chega a um fim com a inundação do Monumental Teatro Massachussets, a morte de tudo o que tinham por família, a amnésia de Wilson e a separação dos irmãos.
Cerca de 20 anos depois, William recebe um postal de Wilson – agora Cleópatra VIII – chamando-o ao Egito, onde lhe aguardava para o reencontro. Ao chegar no Cairo, porém, Cleópatra não está mais lá – não está, na verdade, em lugar algum. E é aí que começa a história, um curioso desvelar de situações complexas e dolorosas.
Ao longo de toda a trama o tema dos duplos é recorrente, bem como uma busca ao mesmo tempo esperançosa e assumidamente fútil por uma identidade, por algo substancial para ser chamado de próprio. A narradora é a própria Cleópatra, que fala ao leitor de um lugar não identificado, mas que a todo momento oferece um ruído, algo que não se encaixa.
Quiçá, como me advertiram, esse não seja o melhor livro de Terron. Não li outros para saber. Mas é um livro interessante, cuja leitura inevitavelmente precisa de várias camadas – existem tensões de ordem sexual, no aspecto físico e psicológico, assim como questões sobre a memória e sobre a família; todas ironicamente construídas a partir da desconstrução sistemática dos conceitos estabelecidos a respeito dessas coisas.
TERRON, Joca Reiners. Do fundo do poço se vê a lua. Companhia das Letras, 2010. 278 págs. Preço sugerido: R$ 45,50
Saiba mais sobre essa e outras obras no site da Companhia das Letras
“Excetuando-se isso e o fato de Wilson desde cedo identificar-se como mulher, não existem diferenças entre os dois.”
Só essas diferenças. Nem são grande coisa.
RIALTO.
Esse plot parece motado às pressas. “Caralho, preciso escrever sobre amor no Cairo…. Ah, que seja sobre amor entre irmãos. Espera, falta algo: gêmeos, isso! Mas ainda parece meio bobo, como deixar mais interessante? Um podia ter alguma deficiencia mental e o outro um desvio sexual. Serão órfãos, claro, mas como?” e por aí vai
Não acho. Acho que certos temas (como o do duplo), só por terem sido muito utilizados tanto em peças antigas (como “A comédia dos erros”) quanto em novelas mexicanas (como “A usurpadora”), não são necessariamente bobos. Aliás, longe disso. A questão da formação da identidade com relação aos outros é universal. E Joca Terron consegue se posicionar bem perante uma grande tradição, sem fingir desconhecê-la ou superá-la e sem enaltecê-la a ponto de desmerecer sua própria obra.
Acho que o seu “montado às pressas” parece querer designar “com extenso uso da imaginação” ou “não calcado puramente na realidade”. Se você vir o video em que Joca Terron fala, no Egito, a respeito das ideias que teve para o romance, dá pra perceber um pouco o processo pelo qual passou a criação da narrativa (processo no qual foi decisiva, por exemplo, a perda de um moleskine cheio de anotações).
Não que o autor importe, propriamente, como talvez o comentário faça parecer. Tanto não importa, ao menos para mim, que acho que “esse plot parece montado às pressoas” não serve de nada para desmerecer uma obra. Aliás, quantas obras, se resumidas, não pareceriam “montadas às pressas”?
E, mais, quantas obras animais não foram escritas ás presas, como quase tudo que Dostoiévski escreveu. Ele escrevia para pagar dívidas de jogo. Escrevia loucamente e rapidamente para ter dinheiro logo. E, ainsa assim, é um gênio!