Após ler Consider the lobster, de David Foster Wallace, pensei que nunca mais gostaria de ler outros ensaios. Não que o texto do escritor morto em 2008 não fossem bons, eles são excelentes. Irônicos, divertidos e informativos com as imensas notas de rodapé, como de praxe. Contudo, resolvi aceitar o desafio de ler Nove ensaios dantescos & a memória de Shakespeare, de Jorge Luis Borges, lançado há pouco tempo pela Companhia das Letras, para ver se me incentivava a reler A Divina Comédia. Não era apenas isso. Os ensaios de Borges são instrutivos e esclarecedores, se apoiando em diversos outros estudos sobre a obra de Dante. Esses textos não explicarão cada canto da obra ou todas as partes tim-tim por tim-tim que Dante passa, isto é, não será muito fácil acompanhar se você não tiver o mínimo de conhecimento sobre poema épico – considerando que existem personagens “reais” que atravessam os caminhos, um deles, inclusive, é o guia de Dante pelos três reinos além-túmulo, Virgílio (autor da Eneida).

Como todo ensaio, eles vêm para mostrar visões e reflexões pessoais de um autor e num tom menos formal, apesar de didático. Borges não só escreve um texto fluente e apetitoso, como também parece nos contar uma história, dar uma aula – citando exemplos e colocando muitos versos em sua versão original ou nas traduções (geralmente do inglês) que mais condizem com a interpretação que quer chegar -, e nos instigando a tirar nosso exemplar de A Divina Comédia da prateleira e reler, por enquanto, os cantos analisados por ele. O autor argentino também concebe algumas inversões de interpretações, nesse caso “O falso problema de Ugolino” é um deles. Nesse ensaio Borges levanta a questão entre a realidade e a falsidade de Dante, que gostaria que as pessoas desconfiassem das ações de Ugolino – ele comeu ou não seus filhos em uma medida desesperada para mostrar que a fome é maior que a dor (nesse caso, uma dor espiritual por se tratar de alguém que está no Inferno)? Esse questionamento leva-nos até um certo limite para relermos e tirarmos nossas conclusões, porém, Borges avisa: “Negar ou afirmar o monstruoso delito de Ugolino é menos horripilante que vislumbrá-lo” (o verdadeiro Ugolino da história cometeu realmente canibalismo, mas não cabe a Dante informar-nos disso).

Em “O carrasco piedoso”, um dos melhores ensaios, Borges separa em quatro conjecturas uma análise dos julgamentos de Dante, o autor, sobre determinados personagens da sua Comédia. Será que todo assassino merece a pena de morte? Todos devem arder no Inferno? Devido as suas histórias num passado remoto ou recente, eles são vítimas, talvez, de um castigo injusto. No mundo criado por Dante era possível sentir piedade de certos pecadores e o único justiceiro seria Deus – eximindo então o julgamento do próprio escritor (teólogo, crente e ético).

Fica reservado o posto labiríntico, a força motriz do escritor argentino em transformar seus ensaios em uma quase prosa, o capítulo “Purgatório, I, 13”, em que Borges abre com uma sentença magnífica: “Como todas as palavras abstratas, a palavra ‘metáfora’ é uma metáfora.”, que irá guiar esse texto. As metáforas sugeridas fazem parte de um jogo de reciprocidade, num exagero cabível apenas na imaginação. Não é de se negar que todos os exemplos citados são realmente curiosos, como se Dante previsse que aquelas passagens seriam um círculo infinito graças ao poder da figura de linguagem. Em um de seus exemplos, Borges cita “Caminha, como a noite, em esplendor”, a passagem deve ser aceita pelo leitor imaginando uma mulher alta e morena caminhando como a Noite, e não seria a Noite uma mulher alta e morena? Esse é o ciclo infinito de metáforas, está aí um dos habituais labirintos criados pelo escritor – o que se torna uma verdadeira isca para empurrar de vez o leitor no abismo d’A Divina Comédia onde os ecos esbravejam: Leiam!

Seria demais estragar as outras análises de Jorge Luis Borges, por isso aconselho àqueles que querem se aventurar nesses ensaios a manterem sua cópia fiel de A Divina Comédia bem ao lado. Ainda existem outros seis irrepreensíveis a serem conferidos mais de uma vez pelo teor analítico e acessível que o autor de O Aleph proporciona.

Ignorando um pouco Dante, vamos a Shakespeare e os contos maravilhosos que formam “A Memória de Shakespeare” – um dos últimos textos escritos por Borges antes de morrer em 1986 -, reina a obsessão e devoção que povoam os sonhos e as lembranças. No texto que dá o nome a essa pequena coletânea dentro de uma coletânea (vai saber se isso não era um labirinto Borgeano também), vemos Hermann Sorgel fissurado por uma suposta memória escrita por Shakespeare desde os tempos de menino até 1616. A crescente tormenta de se apoderar de tamanho tesouro atrapalha as próprias memórias do professor, o fazendo perder a razão em certos momentos e não imagina se é ele mesmo ou outra pessoa.

Ainda em outro caso de obsessão está o conto “25 de agosto de 1983”, onde Borges encontra a si mesmo, envelhecido, em um quarto de hotel. Entre as explicações sobre sonhos e compartilhamento dos mesmos. Mas quem está sonhando com quem? Borges velho com sua faceta mais jovem ou o jovem com sua versão senil? Em meio a isso, eles poderão se salvar da morte ou viver melhor? Nunca saberemos até algum obcecado borgeano conseguir uma biografia escrita por ele mesmo. O importante será viver de outros sonhos para adormecer o aterrorizante futuro nas memórias. Como são contos que tratam de obsessões, os leitores familiarizados com o autor conseguirão distinguir grandes traços que infestaram a obra dele, como a rosa ou os tigres.

Um peça fundamental da bibliografia de Jorge Luis Borges, Nove ensaios dantescos & a memória de Shakespeare pode conter ensaios sobre um livro que soam exatamente como uma prosa cativante e pequenos contos que parecem ensaios sobre sonhos e memórias. Seja qual a classificação correta, é indispensável embarcar nessa prosa ensaística de um dos maiores escritores que já viveu.