Acho que boa parte de vocês sabem (ou supõem) que estudo História e que o faço, entre outros meios através da literatura. O título da minha coluna é um bom indício disso e eu já devo ter falado algumas vezes em uma resenha ou outra. Investigo as obras de John Steinbeck (1902-1968) da década de 30 e discuto o retrato que ele produziu acerca do processo de empobrecimento e expropriação das antigas classes médias dos Estados Unidos. Não vim aqui hoje falar sobre a minha pesquisa (prometo que ainda o farei), mas sobre alguns pontos que acho bastante interessantes para serem discutidos acerca da complexa (e controversa) relação entre a literatura e a história.

Esse não é um assunto que eu já não tenha abordado em outros momentos, mas queria explorá-lo aqui sob uma perspectiva que me pareceu deveras relevante ao tratar dessa questão, e diz respeito ao tratamento que Carlo Ginzburg dá quando de suas próprias análises.

Eu já escrevi uma resenha sobre os quatro ensaios do historiador italiano reunidos no livro Nenhuma ilha é uma ilha (recomendo a leitura dela antes de avançar nesse texto), e, diante do comentário um tanto restrito nessa ocasião, resolvi explorar essa temática aqui um pouco mais a fundo. Por favor, não entendam essa coluna como um manual de como lidar com essa questão nem como um apanhado de curiosidades acerca do tema, um dos principais motivos que me levam a escrevê-la é a esperança de que ela gere fortuna crítica. Isso mesmo, discussões, por isso façam uso da seção de comentários para se manifestarem. São eles que, concordantes ou não, nos ajudam a crescer e nos animam a escrever mais e mais.

Enfim, introduções gigantescas à parte, aos fatos. Ginzburg explora vários exemplos da literatura inglesa procurando desconstruir a suposta insularidade a ela atribuída. Para isso, ele localiza obras que influenciaram os escritos de autores ingleses, de modo que, levando em conta essa influência, a leitura sobre parte do cânone inglês seria modificada em alguma medida.

Nesse ínterim, Thomas More, por exemplo, teria sua Utopia enxergada sob o viés de obra satírica, por conta de ter sido influenciado por suas leituras de Luciano de Samósata. Creio que se esconde aí um problema digno de discussão: ao rastrear a influência de Luciano de Samósata em relação à Utopia, o conteúdo de crítica social e retrato de um processo histórico que o livro faz ficam relegados à segundo plano? Vão por água abaixo? Continuam sendo o que “sempre” foram?

É necessário aqui abrir um parêntese: embora a leitura de Ginzburg se volte a rastrear essa influência como forma de desconstruir a insularidade literária inglesa, ele não discute a fundo uma suposta hierarquização dessa leitura em relação a outras, o que quer dizer que não podemos afirmar com certeza tal concepção. Ginzburg também não partilha, como pode ser atestado por outras obras suas, de um relativismo que encara qualquer leitura como digna de atestado de verdade. Mas então, como compreender essa discussão?

A influência que emana do campo da literatura solapa o condicionamento histórico? Quando More diz que as ovelhas devoravam os homens, ele se refere à situação histórica inglesa em que os cercamentos expulsam os camponeses (e colocam ovelhas particulares nas outrora terras comunais), ou essa é uma sátira embebida do humor de Luciano de Samósata?

Não acho que extremismos de qualquer um dos lados possam dar conta de resolver essa questão, mas quero propor aqui um questionamento: a própria influência literária não é ao mesmo tempo histórica? Embora “pequemos” por omissão ao fazê-lo, deixemos de lado as discussões em torno da “base” e “super-estrutura” que o materialismo histórico nos legou aos montes. Fiquemos mais restritos ao nível da empiria através do exemplo de More.

Podemos dizer com certeza que Thomas More, ao longo de sua vida, não leu somente a obra de Luciano de Samósata. Que pese o acesso dificultado aos livros e as condições de leitura da época, ainda podemos afirmar tal coisa. E eis que surge a questão: das outras leituras que More certamente fez, porque foi a de Samósata que o influenciou tão sensivelmente (levando em conta que Ginzburg tenha tido sucesso no rastreio dessa influência)?

Certamente, havia algo nessa obra que o afetou mais direta e intensamente em detrimento de outras. Isso não nos diz algo? Por que essa obra o influenciou mais do que outras? Partilho da opinião de que havia algo em senso histórico que fez com que ela fizesse mais sentido para ele do que outras que ele certamente leu. E digo “senso histórico” em uma acepção ampla, que abarque desde os eventos mais estruturais até os mais diretamente experimentados pelos sujeitos.

Se tomarmos como pressuposto o que Marx escreveu sobre o indivíduo ser o conjunto das relações sociais, podemos entender que algum resquício da realidade, alguma influência que não seja absolutamente individual tenha movido More, e certamente não foi uma apenas. Existir socialmente é a condição do ser humano, então não se pode conceber os frutos de sua ação senão na dialética do individual e do social, micro e macro, se preferirem. Nada é absolutamente individual nesse sentido, tudo é social e historicamente construído, de modo que a decisão de Thomas More se refere tanto à ele quanto ao derredor histórico no qual ele se encontrava.

Rastrear os condicionamentos, “os fios e os rastros” (para usar a terminologia ginzburguiana), é o que há de mais desafiador e instigante ao investigar a literatura através da história.