Foi lendo Nove noites, do Bernardo de Carvalho que me dei conta de quanto estava perdendo em não conhecer autores brasileiros contemporâneos. Há mais riqueza e boas leituras na literatura brasileira atual do que podem supor artigos de revistas pessimistas e o senso comum, que acha que o ônus da literatura tupiniquim se sustenta sobre os ombros de três ou quatro nomes, metade deles do século retrasado. Pó de parede, da jovem escritora gaúcha Carol Bensimon, serve como prova disso.

Pó de parede é um livro curtinho, que dá para ler de uma sentada, mas não se deixe enganar pela natureza “não-tijolesca” do livro, ele pode até não ser tão pretensioso (o que, na maioria das vezes, é um sinal de maturidade), mas encerra uma prosa intimista e belamente lapidada que se vale de pequenos fragmentos, referências, metáforas e comparações que em seu conjunto possuem um “grau” de expressividade muito interessante.

Pó de parede se constitui de três contos: A caixa, Falta céu e Capitão Capivara. São histórias independentes que não se tocam em relação ao enredo, mas que possuem diversas intersecções temáticas e que, a meu ver, lidam com o que, tratando assim de forma mais generalizante, poderíamos chamar de modernidade. Ou pelo menos alguns dos aspectos dela, a urbanização, a solidão, a superficialidade falseada das relações pessoais e o clima de decadência.

Vamos por partes: A caixa conta a história de Alice e de seus amigos, Tomás e Laura, em uma fase da vida bastante conturbada, a adolescência. Essa história, porém, é contada do ponto de vista adulto tanto quanto do adolescente. As divisões do conto se dão em torno de anos específicos, nos quais estão localizados eventos-chave para tentarmos compreender o infausto destino de Alice.

O conto lida com as experiências desses adolescentes, como a experimentação de drogas, de relacionamentos e de música, por exemplo. No caso de Alice, algo mais, pois ela mora na casa arquitetonicamente peculiar projetada pelo famoso arquiteto Kowalski: a Caixa. Não bastasse isso, ela é estigmatizada ainda pelos pais nada convencionais que possui, que parecem ser hippies, o que contribui para alimentar o caldeirão de mistura explosiva que é sua existência, e que desempenha um papel fundamental na constituição dela.

O segundo conto, Falta céu, versa sobre o choque da modernização urbana sobre os habitantes de uma cidadezinha do interior, principalmente Lina, uma adolescente. Além dos lampejos de dramaticidade, como quando um sujeito invade o condomínio que está sendo construído ou quando são contrapostas as agruras cinzentas e frias do concreto ao clima tépido e acolhedor do interior; Bensimon também pontua seu texto com tiradas irônicas e um sarcasmo velado mas perceptível. As tiradas aparecem, por exemplo, quando ela fala sobre as propagandas do condomínio, que prometem natureza (e que só oferecem mais artificialidade) ou quando brinca com os lugares-comuns do discursos dos vendedores, embalados pelo “administrês” tacanho e um marketing cheio de cafonices de auto-ajuda.

O terceiro conto é Capitão Capivara, na minha opinião o mais emblemático dos três. Autores que falam sobre o estranhamento que causa a modernidade ou como são inócuos diversos dos elementos que a constituem são vários, e Carol Bensimon se insere entre eles com elegância, desnudando situações isoladas para costurá-las com o quadro mais amplo e mostrar algumas das contradições bizarras que, pela repetição exaustiva, se tornam banais.

A história é contada a partir de dois focos: Clara, a aspirante a escritora que aceita um emprego em um hotel como o mascote Capitão Capivara, cuja função é entreter as crianças e dar sossego aos pais em férias; e Carlo Bueno, um escritor decadente que largou a veia crítica da literatura para vender-se à literatura policial propagandística, em que chega a fazer publicidade de produtos em seus livros.

A admiração de Clara por Carlo é desconstruída conforme ela vai conhecendo o autor e descobrindo o que o ofício de escritor se tornou para ele. Nessa relação envolve-se ainda uma amiga de Clara, que entra em desavença com essa e resolve dar o troco. Capitão Capivara é um conto sobre a literatura e sobre a existência na contemporaneidade, onde sonhos são decompostos à toque de caixa pela constatação cruel de verdades outrora desconhecidas.

A teatralização da convivência, o falseamento das identidades e a volatilidade da existência de crenças ou de modelos são todos sintomas de uma realidade que desafia todos os que vivem, e de forma peculiar os escritores, que devem tentar entender e dar visibilidade aos conflitos que pululam nela, por mais escamoteados que esses estejam. Espero não estar exagerando na minha leitura de Pó de parede no que tange à modernidade, mas conscientemente ou não, Carol Bensimon tratou de vários dilemas e contradições de nosso tempo, extraindo deles drama e expressividade com pitadas de sarcasmo e elegância. Isso não é qualquer coisa.