Até a Segunda Guerra Mundial a maioria dos países europeus eram plurinacionais. Isso quer dizer que, no território que se chamava Polônia, por exemplo, viviam poloneses, alemães, polábios, judeus, bielo-russos, ucranianos e lituanos. Foram as duas grandes guerras, a xenofobia e os grandes relocamentos, via de regra forçados, que fizeram com que cada país passasse a ser habitado praticamente por uma só nacionalidade.

Na Iugoslávia, porém, a coisa funcionou de maneira diferente. As diferentes nacionalidades constituíram, cada uma, seu país. Mas Croácia, Eslovênia, Sérvia, Bósnia, Montenegro e Macedônia estavam unidos em uma federação e, na prática, eram um único estado. Como resultado a separação étnica não aconteceu ali.

Foi apenas com a morte de Tito e a dissolução da Iugoslávia que as diferenças entre os vários povos vieram à tona, e a Guerra dos Bálcãs aconteceu. Sérvia e Montenegro, sob o comando de Slobodan Milosevic, atacaram a Croácia, a Eslovênia e mais tarde a Bósnia, que se declaravam independentes. Ambos os lados tornaram-se brutais e limpezas étnicas aconteceram, na forma de assassinatos meticulosamente calculados e de estupros em massa – a criança sempre tem a nacionalidade do pai, então se, por exemplo, todas as mulheres croatas carregassem filhos de sérvios e os homens croatas estivessem todos mortos, em uma geração a croácia seria habitada por sérvios. Vizinhos que viviam em paz passaram a se odiar.

A guerra acabou, o que era a Iugoslávia agora são seis países independentes (ou sete; mas o Kosovo, de maioria albanesa não é reconhecido por muitos países) que vivem em paz, os idealizadores e incitadores da barbárie foram presos, julgados e condenados. As feridas, porém, não cicatrizaram: acusações e culpas ainda pairam no ar.

E é nesse cenário, mais especificamente na Croácia de 2004, que se passa a ação de Uho, Grlo, Nož, de Verdrana Rudan, lançado em ingles como Night, pela Dalkley Archive Press, tradução de Celia Hawkesworth.

A protagonista, Tonka, já não é mais uma mulher tão jovem, podemos apenas adivinhar que sua idade está entre cinquenta e sessenta anos. Ela é filha de mãe croata, entusiasta do antigo Partido Comunista Iugoslavo e de pai sérvio, que nunca conheceu mas que culpa por muitos de seus problemas. É casada com Kiki, que vende ternos roubados. Os dois tem uma filha, chamada Aki, que estuda – ao que tudo indica – na Alemanhna.

O livro é um grande monólogo de Tonka, na noite em que espera a chegada de Miki, seu amante que é 12 anos mais jovem, para levá-la embora. Ela espera na frente da TV, vestindo o pajama do marido. E ela se dirige a alguém, que incorpora-se no leitor.

Mas Tonka é um barril de ódio: ela odeia os sérvios que vivem na Croácia como ela, ela odeia os croatas, ela odeia as mulheres casadas, ela odeia as gerações mais jovens e as gerações mais antigas, ela odeia sentir-se feia e odeia, também, a obrigação de sentir-se bonita, odeia os EUA, a Guerra dos Bálcãs, a Guerra do Afeganistão, todas as guerras.  Acima de tudo Tonka odeia dar explicações. Cada vez que sente que seu ouvinte poderia perguntar os motivos por trás de alguma coisa ela explode, demonstrando uma crueldade verbal desmedida.

Em todos esses ódios, temos o cerne da obra. A guerra é um deles: é quase inevitável não falar da guerra quando ainda se vive suas consequências. Mas o outro ponto é menos explorado, e talvez seja ele o grande atrativo da obra de Rudan. Ela retrata a situação da mulher no que sobrou da Iugoslávia. Pois se os homens morreram na guerra, as mulheres perderam seus pais, irmãos, maridos e amigos e, ainda, foram violentadas, abusadas e obrigadas a permanecer em silêncio. Foram obrigadas a reconhecer estupradores e assassinos – que estupraram e mataram do outro lado da fronteira – como heróis.

Verdrana Rudan é de origem croata. No começo dos anos 1990 ela perdeu seu emprego numa rádio por satirizar o presidente da Croácia. Tonka é uma sérvia que vive na Croácia. O livro, no entanto, é uma das poucas ocasiões em que se deu voz às mulheres iugoslavas, e, quiçá, não só a elas: todas as mulheres, crianças e velhos, todas as minorias poderiam sentir esse ódio nascido da impotência e do abuso que Rudan expressa tão bem.