Creio que “poucas” pessoas podem dizer que nunca tenham nem sequer ouvido alguém falar a respeito de Admirável mundo novo. Seja através da associação com distopias, de comentários esparsos sobre realidades opressivas, bizarrices, experiências literárias ou simplesmente sobre o mal estar que a tecnologia carrega em seu bojo. O livro de Aldous Huxley certamente não se tornou um clássico e nem ganhou tanta notoriedade à toa, é definitivamente um livro marcante.

Ainda que, tenho certeza, algumas pessoas associarão a ideia de futuro pessimista a obra mais conhecida de George Orwell, há que se entrar em favor de Huxley e mostrar como na década de 30 já haviam vozes se levantando para procurar mostrar hipóteses sombrias sobre o porvir do mundo.

Huxley, por sua vez, não deve ser visto também como grande pioneiro desse estilo, pois o russo Yevgeny Zamyatin já havia escrito uma história que certamente inspirou o escritor, retratando um futuro onde a humanidade tinha dado passos largos rumo a uma direção nada acolhedora. De qualquer forma, Admirável mundo novo está incrustado na literatura mundial não por acaso, e é isso que pretendo tentar pôr em relevo nessa resenha.

O livro foi publicado em 1932 e retrata um futuro onde a tecnologia tem papel primordial na manutenção da estratificação social e no controle de todos os mais milimétricos aspectos da sociedade. Como sinal dessa mudança, podemos apontar a cronologia existente nesse mundo distópico: ela começa a ser contada a partir da invenção do modelo T por Henry Ford. A ligação com a criação tecnológica pode soar antiquada para nós agora, mas representava uma mudança bastante relevante para a década de 30, afinal, Ford foi um dos principais nomes da indústria não só estadunidense, mas mundial.

A invenção do modelo T não aparece somente como notação de tempo, mas com um significado religioso, pois o formato da letra “T” passou a substituir a cruz, tão cara ao cristianismo. Não mais Cristo, mas Ford é que representava uma entidade basilar na constituição do mundo. Ao passo que a tecnologia impregna o imaginário da população sob essas formas, outros setores da sociedade se valem de maneira extensiva dos avanços tecnológicos.

O primeiro capítulo já nos atira em uma fábrica de seres humanos. Sim, exatamente isso, somos convidados a um tour ao longo da linha de produção (ah, a emblemática e famigerada linha de produção) para sabermos como os embriões são gerenciados e levados, por meio de uma manipulação precisa, a se tornarem indivíduos de um modo ou de outro. Não se controlam somente fatores biológicos, como a cor de pele, a estrutura capilar, a altura e as tendências de crescimento; mas também condições mentais e capacidades fisiológicas e intelectuais, que acabam por garantir uma estratificação social rígida e muito bem delimitada.

A tecnologia faz as vezes de natureza e condiciona de maneira bastante eficaz o que serão os seres humanos. As classes Alfa, Beta, Gama, Delta, etc., são os repositórios dos indivíduos fabricados na bizarra linha de produção. De acordo com os condicionamentos recebidos, eles serão direcionados a uma determinada classe e ficarão responsáveis por um ou outro trabalho. Toda a vida, por conseguinte, se encontra acorrentada ao fato de que os sujeitos já foram desenhados biológica e socialmente, para ocuparem um determinado lugar. Ou seja, não passam de engrenagens ou peças quaisquer, já que perdem sua liberdade de ação pela programação padrão.

As emoções são suprimidas por meio de drogas, a sexualidade é canalizada pela exacerbação em um ato físico descolado de sentidos humanos e cada vez mais os seres humanos (se é que podemos ainda assim chamá-los) se tornam incapazes de resistirem a essa programação.

Porém, com um jogo de nomes divertido, Huxley nos apresenta Bernard Marx, um sujeito que está cheio da situação como a vê e encontra em Lenina não só uma companheira para o sexo como uma confidente e potencial ajuda em seus objetivos. Eles se envolvem em uma tresloucada trama que os leva a conhecerem as reservas dos Selvagens (os seres humanos não feitos em laboratório e que vivem segundo os preceitos e modo de vida pré-Admirável mundo novo), trazê-los às peculiaridades sem sentido da sociedade voltada à tecnologia para estudo e questionarem, sob muita pressão, o status quo do qual eram produto e vítima.

Não gosto de encarar Admirável mundo novo como uma alegoria, acho que esse termo tem uma tradição de mecanicidade que esteriliza mais do que ajuda. Entretanto, através da construção literária, Huxley nos informa bastante a respeito de sua sociedade e sobre como a tecnologia (e seus mais diversos corolários: exatidão exacerbada, controle absoluto, condicionamento artificial, anti-naturalidade, etc.) tendem, nas condições em que são geridos, a prevalecer sobre os seres humanos.

Apesar do lampejo débil de esperança, a obra de Huxley toca numa ferida que jaz em aberto ainda em nosso tempo (quiçá com mais purulência ainda): a de que quanto mais avançam as tecnologias, mais elas suplantam a humanidade. Essa discussão não tem nada de nova, mas nem por isso se tornou velha, e isso por si só já é indício da atualidade da obra e da profundidade das questões que aborda.