A cada livro do Saramago que leio, sinto mais remorso por não ter enveredado por sua literatura antes. Tudo bem, eu só li três, mas nesses três dá para antever todo um universo literário se desenhando, preenchido em todas as suas constelações de forma e conteúdo, sinalizando de maneira brilhante para novos rumos e dimensões da experiência literária, seja na experimentação formal, seja na amplitude filosófica das questões nas quais toca. A riqueza da narrativa, tanto estética quanto temática, é uma das marcas mais contundentes de Ensaio sobre a cegueira, romance publicado em 1995.
Antes de ler o livro eu tinha assistido ao filme de Fernando Meirelles, de 2008, e a experiência havia sido deveras arrasadora. Saí do cinema mortificado pela pesarosa epifania de minha (e nossa) própria fragilidade. Como pode nossa existência estar tão ancorada em nossa visão? Como sendo privados de um de nossos sentidos estaríamos sendo tão fulminantemente atirados em nosso próprio ocaso?
Perceber a visualidade da nossa existência – a maneira essencial como tudo o que fazemos e somos está fundamentado na nossa capacidade de transformar luz em imagens através de um órgão especial – é adquirir uma consciência tão elucidativa quanto assustadora. Não sei quanto a vocês, mas eu nunca tinha me dado conta da quantidade de aspectos de nossa vida – tanto no geral quanto no cotidiano – que dependem da nossa capacidade de enxergar. É simplesmente aterrador!
Saramago se deu conta disso, e foi justamente para explorar essa questão que ele usou das potencialidades da literatura. O que ele faz em Ensaio sobre a cegueira é um pesadelo tétrico sobre um mundo em que as pessoas deixam de enxergar. A cegueira massiva encontra uma exceção, uma mulher que, gozando de suas faculdades visuais, apesar do contato com seu marido já cego, passa a carregar um fardo gigantesco, uma vez que se torna a esperança do grupo de pessoas com as quais convive.
Tudo começa quando um homem aguardando o semáforo abrir fica repentinamente cego. Procurando ajuda para a desesperadora situação, ele “contamina” uma série de pessoas, com as quais é mandado para as instalações de um antigo manicômio. Ali convivem tanto os que já foram atingidos pelo mal-branco – nome dado a doença, já que os por ela afetados passam a enxergar branco ao invés de trevas – como aqueles que tiveram contato com eles, ou seja, aqueles a quem se espera que fiquem cegos. Devido ao medo enorme que a doença causa, o isolamento é mantido à risca e os cegos tem de arrumar seus próprios meios de sobreviver, coisa que, mesmo estando com a mulher que enxerga, só conseguem fazer de modo extremamente precário.
O prédio onde a maior parte da trama se passa deixa de ser regido pelas regras comuns da sociedade humana. A bestialização é uma das consequências, pois mais do que o bom senso, passa a operar ali a lei do mais forte, um espetáculo tragicômico onde cegos se digladiam em torno da comida que lhes é enviada de tempo em tempo.
O livro nos atinge com um impacto avassalador, não dá para sair do livro sem ter sido afetado ou sem ter levado o leitor a pensar, ainda que por um segundo, como agiria estando no lugar de um dos cegos. A paisagem é desoladora em praticamente todos os sentidos, descobrimos que mais do que uma forma de “ver” o mundo, a visão ocupa um papel primordial na constituição do que somos. Ela é mais do que um processo biológico em que o cérebro interpreta os sinais nervosos enviados pelo olho formando uma imagem, a visão estrutura nossa sociedade como a conhecemos em mais aspectos e formas do que somos capazes de apreender.
Saramago nos leva também a um novo “olhar” (sério, não estou usando esses verbos de propósito) sobre as pessoas cegas, para notarmos quão admirável é sua capacidade de se situar num mundo que tem a visão em alta conta. Atividades simples e monótonas para os que veem se tornam provações para os que não enxergam. É preciso reconhecer que o que move essas pessoas é uma perseverança absolutamente louvável, e que não costumamos nos dar conta disso.
Basta prestar atenção para os verbos que usamos para nos referirmos às coisas mais banais, como quando começamos uma frase com um “Veja bem” ou quando, querendo aconselhar alguém a pensar de novo, dizemos “Olha bem o que você vai fazer”. Mesmo nossa concepção de verdade tem a visão em alta conta, já que ela funciona como uma espécie de estatuto de veracidade, característica incrustada na expressão “Ver para crer”, por exemplo.
Os exemplos são infinitos, tantos quanto o são as possibilidades metafóricas dessa perda de visão na literatura. Ela poderia simbolizar uma perda da capacidade de discernimento, já que às vezes “estar consciente” de algo e “ver” algo são sinônimos. Poderia ser também uma crítica de Saramago a um mundo saturado de aparências, onde outros tipos de percepção e sociabilidade que não a visual deixam de ser importantes. Pode ser ainda uma espécie de alerta a respeito de darmos tanta importância ao que vemos, quando a visão pode se revelar enganadora ou limitadora, contrapondo-se a uma experiência sensorial-intelectual ampla, que seria talvez a mais adequada e próxima forma de “ver” a realidade.
Acho que é um pouco disso tudo, mostrado com maestria e uma visceralidade dantesca que chega a, em alguns momentos, nos dar engulhos. Saramago nos mostra como a visão possui uma dimensão ontológica na humanidade, e como dependemos dela de mais formas do que somos capazes de imaginar.
Olá Lucas,
Parabéns pela resenha! O ensaio sobre a cegueira é um dos livros que mais me fez pensar sobre a condição humana perante às dificuldades. A cegueira, como você mesmo mencionou em sua resenha, pode não ser somente física, mas também intelectual (o que au acho que é a pior de todas).
Odair
Ótima resenha Lucas! Fiquei interessado pelo assunto abordado neste livro. Realmente, já ouvi falar várias vezes no grande José Saramago mas nunca tive a oportunidade de apreciar qualquer uma das suas obras, provavelmente porque nunca fui bem incentivado à procurar autores como este. Se tiver a oportunidade, pretendo me aventurar com um desses. Obrigado pela recomendação!
Eu sempre agradeço por ter encontrado Saramago logo cedo na minha vida. Ele tem livros maravilhos como esse que vc faz a resenha e todos nos fazem pensar muito.
Só que eu não consigo enxergar (o uso desse verbo não é proposital) que ele fala sobre a cegueira física. É sobre um estado de cegueira intelectual, política em que nos deixamos levar, e como consequência um mundo podre que ninguém mais consegue sair dele, não conseguimos nem mesmo consertar coisas básicas.
Esse posicionamento político fica mais claro no “ensaio sobre a lucidez”, já leu? É uma critica a condição em que estamos, estagnados. Muito mais do que um questionamento sobre as dificuldades humanas perante uma deficiência física.
Abraço,
Pois é, Camila, não sei dizer não, até porque ainda não li o ‘Ensaio sobre a Lucidez’ (quando lê-lo vai ter resenha, pode deixar, hehe)
Quanto à cegueira ser física ou intelectual, acho que há um casamento interessante nesse sentido, porque o uso da cegueira física como pedra de toque para discutir, como supomos, a cegueira intelectual (e social também, a meu ver) deu um impacto que a obra nunca teria se não tivesse essa cegueira massiva.
Embora eu ache que o Saramago realmente não quis restringir sua história a uma especulação sobre como seria o mundo se fossemos repentinamente privados da visão, não se pode tirar o mérito de usar justamente esse recurso para nos chamar a visão. Se fosse uma visão ‘simplesmente’ intelectual, pode ser que a questão toda não ficasse tão clara. Acho que ele conseguiu amarrar de forma magistral seus intentos filosóficos com as características da ‘natureza’ da ficção.
Não à toa que esse livro seja tão grandioso, olha só quanto já nos levou a refletir, não?
Sim Lucas, Saramago era um grande mestre! Os seus livros todos nos levam a refletir, mesmo o infantil/conto “O conto da ilha desconhecida”.
Leia correndo ensaio sobre a Lucidez, é um livro mais gostoso e mais fácil do que Ensaio sobre a Cegueira, este eu parei por diversas vezes com o estômago revirado…
Depois lhe recomendo, se ainda não tiver lido, “Todos os nomes” e “O homem duplicado”. São os livros que mais gosto dele.
Abraço,
A cegueira na obra de Saramago, acredito, transborda o físico atingindo o caráter e a alma de modo que as atitudes tomadas em cada situação são expressão daquilo que se revela com a escuridão das circunstâncias, todos expressando aquilo que são em sua essência de modo acentuado, alguns demonstrando a podridão humana ao extremo, outros agindo no sentido de ajudar, apoiar, há também aqueles perdidos, sem saber o que fazer mas nenhum incólume.