Há uma definição clássica de História feita por Marc Bloch em Apologia da história ou o ofício do historiador que a resume numa frase mais ou menos assim: a História é a ciência que estuda os homens no tempo. Descobrimos que essa síntese é resultado de um estudo longo, e que, apesar de seu caráter sucinto, acerta em cheio nos pilares centrais da historiografia.

Se a quebrarmos e buscarmos problematizar quais nuances, métodos, teorias e concepções historiográficas estão nela investidos, haveremos de encontrar boas discussões a serem feitas, seja em relação ao estatuto de ciência que tanto reivindicou a História, seja sua essência humana fundamental, seja o reconhecimento do tempo como escopo existencial dos sujeitos históricos, ou seja, nós.

É por conta do elemento “tempo” que quero tecer algumas linhas nessa coluna. A consciência do tempo não é inerente aos homens, ela surge a partir da prática do ser humano em relação ao mundo objetivo e externo. Em outras palavras, através do trabalho em acepção ampla – qualquer atividade física ou intelectual que atue sobre o mundo existente, tanto em seus aspectos materiais ou imateriais. Assim como o trabalho possui uma dimensão ontológica para o homem, também o tempo lhe molda a existência e a forma como ele enxerga a si e aos seus pares.

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Tanto quanto (ou talvez mais que) exercícios teóricos abstratos, é interessante analisar a temporalidade da história humana através de alguns exemplos, afinal, a empiria é a base de toda estruturação teórica. E como primeira parada, resolvi desembarcar num dos momentos-chave da história da civilização ocidental: a Revolução Francesa.

Depois da célebre tomada da Bastilha, acossados pela fome e pela crise econômica – e, consequentemente, de abastecimento – os sans-culottes e demais setores populares, agora aliados aos jacobinos, marcharam sobre as grandes cidades francesas, constituindo aquilo que Georges Lefebvre chamou de “Segunda Revolução Francesa” em agosto de 1792. Uma música insistente tocava enquanto as jornadas populares tomavam – além de outras cidades – Marselha, de modo que justamente essa música se tornou o simbólico hino da revolução, a Marselhesa.

Os tempos da monarquia (mesmo a constitucional) haviam terminado com o processo de Luís XVI, que havia sido condenado à guilhotina em 1791. Acabava também o poderio da Gironda, o partido da alta burguesia francesa, que dominando as instâncias governamentais da época, aplicava seus preceitos economicamente liberais e politicamente conservadores, refreando constantemente os ímpetos revolucionários, prestes a explodir. Estava se estabelecendo ali a República Jacobina.

Apesar de haver mais milhares de temas a serem trabalhados a respeito desse governo, por afinidade me restringirei a instituição, a 22 de setembro de 1792, de um calendário revolucionário que deixava de lado o clássico gregoriano, que só voltaria a imperar por decreto de Napoleão, em 1805.

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O advento da República foi muito significativo para a história não só da França, mas de todo o Ocidente (e Oriente também, em alguma medida): a “felicidade comum” passou a constar na Constituição (promulgada em 1793) e a participação popular estava inscrita na própria forma de governo. Era deveras uma época sui generis! A crença de que uma nova era estava ali se iniciando (e de fato estava) se materializou nesse novo calendário, que, além de dar novos nomes aos meses, zerou a contagem dos anos, de modo que o ano de início do governo republicano passou a ser conhecido como o Ano I.

As promessas da filosofia iluminista e a observação do caráter público que deveria ter a sociedade, agora regida pelo “contrato social” de Rousseau, moldavam a mentalidade da época. Haviam grandes esperanças repousando sobre os ombros daqueles sujeitos, e eles mesmos manifestaram não poucas vezes suas preocupações universais, que se estendiam não só para os franceses, mas para todos os povos da Terra.

O novo calendário tinha em suas entrelinhas todo um significado: a quebra da contagem antiga simbolizava a própria quebra com o Antigo Regime, com a antiga estrutura social e com os antigos preceitos. Inaugurava-se ali um novo tempo. Mais do que uma forma diferente de marcar o tempo, havia todo um contexto histórico de lutas, derrotas e conquistas que o fizera assumir tal forma.

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No livro O romance histórico, György Lukács localiza na Revolução Francesa o desenvolvimento de uma noção de ação histórica sem precedentes, que ele analisa através dos romances escritos na época. Nunca o passado tinha sido enxergado tão intensa e amplamente como pré-condição do presente, e nunca esse presente servira tanto à constituição de uma consciência histórica que atuava como arsenal para a ação dos homens, que reclamavam para si próprios as rédeas de seu destino. Por isso é que o calendário, mais do que um método de marcação e localização no tempo ou uma inovação técnica, foi investido de um significado humano profundo, ligado a temporalidade da existência, consciente de sua contingência e de seu potencial de ação.

O tempo deixara de ser simplesmente a manifestação de um “fenômeno natural”, e passara a ser a própria esteira de lutas dos homens. Ele passara de seu status natural para um significado humano, construído pelos homens em meio à dialética social. Apreendendo-se o passado como herança essencial e o presente como campo de disputa em aberto, cheio de potencialidades, abria-se um horizonte futuro, que, por mais incerto e instável que se anunciava, compelia os homens a lutar, agir, planejar, questionarem-se, enfim, agirem historicamente.

(Esses scans estão presentes na edição comemorativa do Bicentenário da Revolução Francesa, lançada pela revista IstoÉ, em 1989, numa edição encadernada bem interessante.)