(I) Já é praxe que se considere o teatro machadiano como a parte mais irrelevante de sua obra, com motivos justos e justificados de sua inerente inferioridade em relação ao todo e ao gênero. No entanto, o fato do teatro machadiano ser inegavelmente menor, ainda mais se o colocarmos ao lado de outras produções contemporâneas e canônicas brasileiras que, mesmo não constituindo nenhuma tradição teatral de grande alcance, ao menos possuem em seu interior um punhado de obras-primas, o teatro machadiano se empana ainda mais e se demonstra como inegavelmente morredouro.

De sua faceta teatral analisaremos a faceta “clássica” de seu teatro, entre aspas por possuir temáticas, escopos e feições clássicas ou voltadas para tais temas, e não por resistirem à correnteza dos tempos. Esta faceta é constituída de duas peças: Os Deuses de Casaca, de 1866, e Tu, só tu, puro amor, de 1880.

(II) De modo geral, Machado de Assis escreveu apenas comédias de feições burguesas e com um recorte romântico que aos poucos ganhava um pano de fundo nitidamente machadiano, malgrado o engenho esparso com que Machado insuflava suas obras teatrais. Estas comédias, cultivadas desde a juventude, onde Machado ainda buscava uma linguagem para pôr em prática sua expressão latente e altaneira, eram, assim como o teatro carioca e brasileiro no seu todo, uma forma de expressão que os escritores da época buscavam com afinco e de forma generalizada, mais especificamente durante os anos de 1860 e 1870, onde era raro um artista que não tentasse se expressar usando como base a ribalta: pois o teatro era uma forma de glória e de renome que estavam em verdadeira efervescência no Rio de Janeiro da época, e, ainda que ao contrário do que Mário Alencar diz, de que existiram várias obras-primas na época, o que essa mesma época nos legou hoje em dia diz ou morreu ou só tem valor estritamente histórico, no que Machado não foi nenhuma exceção: do século XIX os dois únicos e imorredouros monumentos teatrais são o teatro de Martins Pena e o “Leonor de Mendonça” de Gonçalves Dias (não consideramos o teatro de Arthur de Azevedo, José de Alencar ou peças esparsas de Manuel Macedo ou Gonçalves de Magalhães como cânones num nível tão bem estabelecido como os anteriores).

Mas esta tal forma com que Machado buscava se expressar (“coisa muito séria”, dizia ele) definitivamente não se compatibilizava com seu gênio, de um humor “à inglesa”: ao criar peças burguesas, nitidamente burguesas, Machado traía sua própria tendência pessoal de uma fina ironia que cedia lugar para uma forma de humor que só pode nascer da espontaneidade do gênio criador que lhe insufla; e, não apenas isto, mas de se notar também que desde Quintino Bocaiúva, a quem Machado havia conduzido algumas de suas peças, a crítica costuma taxar as peças machadianas de mais para a leitura do que para a encenação – ou seja: que as personagens não conseguem sair da dimensão de si próprias e interagir com as outras, e que, quando conseguem, se tornam criaturas estáticas e não dinâmicas conforme apregoa e necessita o teatro.

O jovem Machado ainda não havia percebido que seu domínio magistral e ímpar era o da prosa; iria percebê-lo depois; e, mesmo depois na maturidade, iria tentar se ensaiar com algumas peças que, se não encontravam no palco sua realização ideal, encontravam nos saraus e nos eventos literários específicos (como o tricentenário de Camões) uma realização minimamente notável para que pudessem ao menos sair do papel e fingir estarem numa ribalta.

Das peças que Machado de Assis escreveu, onde é realmente difícil encontrar uma que se sobressaia à outra, Os Deuses de Casaca, com aquele já referido objetivo de se corporificar num sarau literário, talvez seja uma peça que, se por possuir valores teatrais baixos (como de fato possui), ao menos consegue uma relevância na história da metrificação brasileira, podendo ser afixada como o primeiro monumento brasileiro que se utilizou do verso alexandrino francês, estabilizado em língua portuguesa por Antônio Feliciano Castilho e introduzido e, repetimos, estabilizado no Brasil por Machado de Assis (a quem Castilho chamou de “príncipe dos alexandrinos”).

Oras: se a união do teatro com o verso alexandrino francês se deu com o teatro clássico francês, isto é, Racine, Molière e Corneille, é de se imaginar que Machado de Assis possuísse um mínimo de conhecimento e de aproximação com os três grandes dramaturgos referidos: e Machado de fato possuía, donde a lendária tradução da peça de Racine, Os demandistas (título original: Les plaideurs), em versos (e bastante louvada por Arthur Azevedo) que Machado teria empreendido e que, depois, por críticas possíveis de atores (Silva Pereira, dizem), o próprio Machado teria destruído num acesso de fúria incompatível com seu caráter pessoal plácido.

Apesar de traduzir Racine, em versos, no que deduzimos que nos mesmos alexandrinos com que Racine escrevera sua peça (ou, na pior das hipóteses, em redondilhas maiores rimadas à moda de Gil Vicente como Arthur Azevedo traduzira Molière), Machado não pretendera seguir o caminho do notável tragediógrafo francês, mas tentara durante muito tempo criar um humor parecido com o maior de todos os comediógrafos, Molière. Um ledo engano: como dissemos anteriormente, o espírito machadiano não possuía a graciosidade nem a espontaneidade com que Molière conduzia suas peças e criava seu humor, brotando de todos os lados até mesmo quando a peça parece querer ceder lugar para um pessimismo de uma “tragicomédia” (como se esse tipo de coisa fosse realmente possível), como notamos em O Misantropo, a peça mais pessoal e pessoalmente plangente de Molière. É que Machado estava na vertente dos chamados “dramas de casaca”, peças de feição realista que tinham como objetivo perscrutar a burguesia e os seus costumes e, ao mesmo tempo, exaltar virtudes tipicamente burguesas e valores éticos como o trabalho ou a família: em suma, uma quimera que, se parecia condizer com o espírito realista crítico, se denunciava por seu final destoante e artificial.

Assim sendo, Os Deuses de Casaca possui uma ligação literal com os dramas de casaca e possui também uma raiz que lhe faz ser localizada com a vertente translúcida e perfeita do teatro francês, comungando desse teatro também na divisão de cenas, baseada na ocupação do palco (em voga na época) e no fato de seguir as leis aristotélicas de unidade (tempo, espaço e ação).

A peça tem como enredo básico as artimanhas do Cupido ao tentar converter os deuses olimpianos à condição de se tornarem seres humanos. A pintura de caracteres possui pouquíssimo, resquícios até, daquela placidez e virtuosidade com que Machado pincela suas personagens realistas como Capitu ou Simão Barcamante; mas o fato de serem proto-personagens não implica que devam ser legadas ao oblívio ou passadas por cima numa análise, simplesmente alegando que é um teatro que não condiz com a grandeza machadiana etc. Ao lermos o teatro machadiano temos a impressão de entrar no ateliê de criação de Machado, observando como ele construía suas personagens e como adicionava e testava a injeção de sua fina ironia nos recôncavos da trama.

Não querendo nos perder em descrições do enredo, que acima falamos tudo o que tinha de ser dito, comecemos logo a destacar quais são os quatro aspectos principais da obra: 1) a dimensão alegórica; 2) a crítica contumaz da sociedade que Machado desvela na última fala de Júpiter, o melhor [pedaço de] verso da obra inteira: “Vou ser banqueiro!”; 3) a possibilidade, na fala do Prólogo e do Epílogo, de observarmos alguns detalhes da visão de mundo de Machado; 4) o fato de não existirem mulheres na peça.

Amanhã será publicada a segunda parte de Duas peças de Machado de Assis.

Sobre o autor: Matheus “Mavericco”, nascido em 1992, Goiânia, gosta de literatura clássica em suas várias acepções, mas em especial daquela forma de arte que consiga contar uma boa história, fruto de uma boa reflexão, numa boa linguagem e com uma boa construção e coesão interna e externa: e que consiga, sendo assim, ser imorredoura até que o coração pare ou atrofie. Não é formado em nada e não está cursando nada; é um vestibulando e um concursando; é um apaixonado; é um leitor.