O terror é, talvez, o gênero de ficção mais conjuntural dentre todas as formas de fantasia narrativa. Enquanto aventuras e amores se mantêm relativamente eternos, nos tocando com dedos semelhantes aos que passaram pelos olhos de leitores de gerações passadas, histórias de terror tendem a envelhecer muito mais rapidamente. O medo é contextual. Não sentimos mais o receio de nossos avós durante as noites claras da quaresma, lobisomens não são mais tão ameaçadores para nós. Já não temos nem mesmo os temores que tiravam nosso sono quando éramos crianças. A impotência diante do desconhecido passa de paralisante a vulgar com o simples toque de um interruptor.

Quando decidi abrir as páginas de Dragão Vermelho, tive para mim que seria apenas mais um bom livro policial, já sem as sombras e suspenses que a década de 1980 poderia me dar. Afinal de contas os tempos são outros, as pessoas são outras, todas munidas de aparatos que dão fim a boa parte dos horrores de anos passados como telefones celulares, computadores e postes com luz de mercúrio. O enredo também não era novo, eu já havia visto o filme dezenas de vezes, em suas duas versões. O que poderia me assustar?

Mal sabia eu que, vindo da pena de Thomas Harris, um assassino serial de trinta anos atrás sempre detém nuances novas de violência.

Tudo começa em 1980, quando Jack Crawford, um agente encarregado da seção de Ciência Comportamental do FBI se aproxima de Will Graham, técnico forense aposentado, com a intenção de recrutar seus serviços para a investigação de uma série de assassinatos brutais, cometidos por uma entidade que a imprensa intitulou como “A Fada dos Dentes”. Graham, com todo o receio que a experiência neste tipo de caso lhe deu, aceita o convite.

Uma premissa simples o bastante para servir de base em um episódio duplo de Criminal Minds.

A trama, porém, explode em uma miríade de tons impressionantemente verdadeiros, em todos os detalhes minuciosamente espalhados pelo autor, nas cenas dos crimes, nos diálogos e nos pensamentos de cada personagem.

Vejam, Dragão Vermelho já foi filmado duas vezes. Uma em 1986, com o nome de Manhunter, uma produção sem muitas repercussões comerciais, protagonizada por um William Peterson que mais tarde daria vida a outro técnico forense: o Dr. Gilbert Grissom de CSI. A refilmagem, homônima ao livro, aconteceu em 2002, com a atuação magistral de Edward Norton, e que teve todo o embalo de fechar uma trilogia composta de O Silêncio dos Inocentes e Hannibal.

Com toda esta insistência em levar a trama aos cinemas, fica claro que o livro tem muito de roteiro em suas linhas.

Sim, tem, mas vai muito além disso.

Thomas Harris é dono de um talento muito caro a quem se propõe a passar medo em seus leitores: ele descreve com imensa facilidade o absurdo, transformando o grotesco em real. Seus personagens têm histórias sinceras, sem abusos. William Graham não é somente um investigador competente; você sente seu cansaço, suas dúvidas e, acima de tudo, sente seu medo diante de um crime que tem hora marcada para se repetir. O suor de sua testa corre junto à do leitor e seu sono salta das páginas, pesando nossos olhos a cada bocejo, a cada noite curta e mal dormida diante das incontáveis páginas de evidências e inquéritos policiais. O assassino, que tem sua alcunha de Fada dos Dentes rapidamente reconduzida a seu nome de batismo, Francis Dolarhyde, tem uma brutalidade que caminha de maneira errante nas fronteiras do justificável.  Mas isso não importa, a violência de seus crimes não precisa de motivos; eles simplesmente são.

Esta relação entre presa e caça, subvertida a todos os momentos, é mediada pela figura de um Hannibal Lecter que, neste momento, é apenas um prisioneiro inteligente capturado por Graham tempos atrás. Este é um ponto importante que divide os espaços dos filmes e do livro: Lecter não é um monstro super-humano. Para todos os fins, ele é real, possível e assustadoramente familiar.

E é justamente esta realidade que traz a nós o caráter que coloca esta trama em um patamar diferente de outras novelas policiais, ela dá forma ao suspense que, a cada virar de página, se transforma mais e mais em medo. Medo dos detalhes, medo das pessoas, enfim, o mais puro temor do que virá dali pra frente.

Mais do que um simples complemento para quem se encantou pelas versões cinematográficas, Dragão Vermelho é uma experiência fundamental a todos aqueles que gostam não só de um bom livro policial, mas de um bom livro em linhas gerais. Uma das melhores histórias de suspense que já tive o prazer de ler e que ainda se sustenta solidamente após duas filmagens e trinta anos de distância.

Sobre o autor: José Antonio Sillos é graduando em Ciências Econômicas pela UFOP. Gosta tanto políticas de desenvolvimento nacional como de Paul Celan, e não vê problemas em misturar as duas coisas. Também tem queda pelo terror, horror, suspense e tudo mais que atrapalhe na hora de dormir. Quando fala no Twitter, é através da alcunha @jsillos.

Dragão Vermelho

Páginas: 348
Tradução de: José Sanz
Sugestão de Preço: R$ 47,00

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