Fico pensando que tipo de comparações poderiam ser feitas entre as obras Yasunari Kawabata e Haruki Murakami. Não estou falando em questões de estética e de estilo, necessariamente, mas de tratamento de temas, de questões, de abordagem, de personagens etc. De antemão explicito que me baseio no romance Kyoto (1962), do primeiro, e Kafka à beira-mar (2002) do segundo.
O que os separa, mais do que a localização geográfica – embora dentro do mesmo país – é o que separa o Quixote de Cervantes e do Pierre Menard: o tempo.
Em Kyoto, Kawabata escreve uma grande elegia aos áureos e pacíficos tempos em que o Ocidente e a modernidade não haviam adentrado nos domínios japoneses de forma tão determinante. Havia espaço e tempo para longas contemplações, para lições milenares de filosofia serem destiladas pouco a pouco na hora do chá e no cotidiano. Havia espaço para que as portentosas casas japonesas e os multicoloridos pagodes vicejassem por sobre a extensão montanhosa do país.
As novas construções, os teares mecânicos, a destruição da natureza, os costumes ocidentais e o trabalho cada vez menos artesanal e mais fabril são todos elementos que representam a modernidade que pouco a pouco vai se instilando em todos os aspectos da realidade japonesa. Kawabata se localiza no conflituoso limiar do Antigo e o novo Japão.
Já Murakami encontra-se no novo Japão, na Tóquio contemporânea, pululante de luzes, néons, arranha-céus, gadgets tecnológicos e urbanidade disseminada. A história de Kafka à beira-mar está fincada no Japão urbano, já profundamente influenciado e amalgamado com o Ocidente. Amálgama esse que se manifesta nos mais diversos rincões da realidade, desde os costumes alimentares e as feições da metrópole contemporânea até os expedientes diários, estruturados numa burocracia fria e, como o livro mesmo sugere, kafkiana.
Por mais que falemos de um mesmo processo histórico – em que pesem as diferenças regionais e as contrapartes subjetivas dos autores – a modernidade aparece de diferentes formas nas duas obras, bem como os elementos que dela diferem. Por exemplo: há uma diferença grande entre os teares mecânicos de Kyoto e as indústrias e usinas pelas quais passa Kafka Tamura em Kafka à beira-mar, mas ainda assim elas são elementos emblemáticos de todo um processo de transformação na dinâmica produtiva e social do Japão dos autores.
Os quimonos feitos artesanalmente e investidos de uma refinada arte são elementos da tradição no romance de Kawabata. No de Murakami, pequenos costumes e referências esparsas sobre a antiga filosofia japonesa atuam nesse sentido. Os livros que Kafka lê e as histórias com as quais se maravilha em suas andanças são, em grande parte, escritos que remetem ao “mundo” tradicional do qual também fala Kawabata.
São formas diferentes de dialogar com a antiquíssima e riquíssima cultura japonesa. A modernidade, seja através de quaisquer de seus avatares, não foi capaz de apagar completamente os laços que unem o passado e o presente, ou mesmo os que unem o subjetivo ao objetivo, o racional ao sensível e os sujeitos uns aos outros.
Tanto é que em ambos os livros, apesar da sua distância temporal e histórica, os laços pessoais de lealdade e compromisso mútuo são as âncoras nas quais a trama toda repousa, bem como a própria vida dos personagens. A união de Naeko e Chieko em Kyoto tem muito de similar com a relação entre Hoshino e Nakata em Kafka à beira-mar, por exemplo.
Kawabata, por suas próprias “coordenadas históricas”, teve a oportunidade de manter um diálogo mais intenso com o Japão clássico com todas as suas histórias e fábulas, enquanto Murakami busca suas mitologias na contemporaneidade, como quando da aparição de Johnnie Walker ou do velho do Kentucky Fried Chicken.
Não se trata de resumir as obras ao retrato da modernidade que constroem, mas de notar a forma como elas se instilam e condicionam suas próprias abordagens, ajudando-nos assim também a compreender, citando o filme de 1956 de George Stevens, “como caminha a humanidade”.