Diversas vezes citei o quanto é bom conhecer um autor novo e aos poucos começar a desbravar sua obra como um homem na selva: primeiro derrubando e devorando obstáculos para logo em seguida perceber os pequenos detalhes, dos seres rastejantes aos pequenos insetos e plantas. Em muitos casos essa trilha é o diferencial para conseguir absorver tudo que um escritor tem a oferecer em suas obras. De David Foster Wallace a Roberto Bolaño, Julio Cortázar e James Joyce. Contudo, não é sempre que podemos contar com autores amplamente discutidos para saber o caminho correto, no meu caso é James Agee que apareceu na minha frente. Nunca procurei nada sobre o ganhador póstumo do Pulitzer e pouco sabia da sua trajetória até ter em mãos Uma morte em família, publicado pela primeira vez no Brasil em 1961 e que esse ano retorna às prateleiras com tradução de Caetano W. Galindo e pela Companhia das Letras.
O título entrega que haverá um luto durante a narrativa, e a beleza deste exemplar está na exatidão cirúrgica imposta pelo autor para conseguir levar o leitor a todas as possibilidades e pontos de vista da mesma história, ou melhor, de todas as pequenas histórias contidas após a morte de Jay Follet. Acrescentando, é claro, uma oralidade nos diálogos (um dos pontos altos reside justamente nas frases e palavras erradas, posicionando e diferenciando os personagens da cidade grande e os do interior, os mais bem-sucedidos com os mais humildes), crenças inabaláveis e relações quase desmanteladas por fatores externos, que transformam os personagens em seres tridimensionais tão tateáveis quanto o próprio livro e suas páginas. É até de se desconfiar que, de acordo com a nota que abre o romance, James Agee não conseguiu terminá-lo após um ataque fulminante em 1955.
Por mais que em grandes momentos as descrições de ambientes sejam um atrativo à parte para a imaginação do leitor, é na exposição detalhada de cada um dos personagens que Uma morte em família se sustenta com classe. Quase como um estudo psicológico, vemos como é para o garoto Rufus (alter-ego do autor) perder seu maior herói sem nem ao menos compreender o mundo direito. Os problemas da infância se chocam com uma realidade tão adulta – tão imediata. Logo nas primeiras páginas sabemos que o avô de Rufus está enfermo e pode morrer a qualquer instante, esse evento infortúnio já é esperado e lidar com essa realidade, essa morte caminhante, é mais fácil do que uma fatalidade. Um acidente de carro que toma a vida de Jay Follet, pai de Rufus, surpreende a todos de uma vez causando estremecimentos e aproximação entre familiares.
Sem medo de retratar uma época onde se relacionar com a fé religiosa era tão obrigatória e involuntária quanto respirar, Agee presenteia o leitor com o dom da dúvida e da culpa. Mary é mãe de Rufus e da pequena Catherine, sua crença cristã é inabalável. Durante todo o casamento ela parece evitar entrar em rusgas para provar sua fé. Isso não está somente ligado ao seu casamento, mas também a sua família, seu pai Joel é um homem totalmente cético que, mesmo não crendo no catolicismo, continua a ser um ombro para a filha. A perda do marido faz Mary reforçar mais ainda sua fé, porém não tem como atrair os filhos para o lado espiritual sem ter que responder como Deus pode arrancar Jay deles – ou seja, não é a morte do patriarca que afasta ou aproxima as crianças, mas sua religiosidade. Mas sejamos justos que esse apego com a religião é apenas uma forma de tentar reavivar a esperança na vida. Do caminho a ser seguido após uma perda tão grande.
A força dessa história autobiográfica é tão iminente e tocante que chega a ser difícil escrever uma sinopse. O correto seria resumir na palavra “morte” e mesmo assim palavras fugiriam para conseguir descrever o impacto. Dá para notar, sem dar nenhum spoiler, que uma morte irá ocorrer, essa consequência, esse clímax adiantado, de nada importa quando começamos a folhear. Há muito mais força em Uma morte em família que um simples resumo. Sutil em penetrar na camada de dor e desamparo de cada um dos personagens que estão envolvidos na perda de Jay Follet, transpassado por tensões raciais e sociais infiltradas na sociedade americana do começo do século XX. A história consegue expor e explorar o sofrimento individual sem apagar a personalidade de cada um dentre suas culpas, suas crenças, lembranças e desilusões, não os transformando apenas em sofredores. Uma história demasiada real.
Pô, que legal ver obras do James Agee sendo reeditadas. Tem um livro que ele e o Walker Evans produziram sobre a situação dos agricultores dos Estados Unidos na década de 30 muito bom. Estou com uma patcha vontade de ler, é ‘Let us Now Praise Famous Men’. O livro surgiu como um artigo de revista financiado por um dos programas do governo Roosevelt, como parte do New Deal.
Esse é um trabalho amplamente falado nas biografias do Agee. Pretendo procurar em breve!
Vou ver se acho também, aí trocamos uma ideia.
Felipe,
Seu post me impulsionou a passar o livro na frente da minha lista de próximas leituras…
E já embalei, de ontem pra hoje, chegando na segunda parte…
Obrigada!!!!
E da segunda parte em diante fica muito mais rápido. Eu demorei para ler porque estava me deliciando com a leitura. Tem muita coisa boa, desde os sotaques até umas brincadeiras de linguagem que foram muito bem traduzidas pelo Galindo.
Felipe,
Boa noite!
Li comentário sobre Uma morte em família, numa recente coluna de Marcelo Coelho, na Folha de São Paulo, na qual ele resenhava Aquela Água Toda, de João Anzanello Carrascoza, estabelecendo um paralelo entre as duas
obras. Claro que me interessei por ambos os títulos. Sua resenha sobre o livro de James Agee, mais a referência comparativa que Marcelo Coelho fez com o de João Carrascoza, me convenceram a ler ambos, o que farei muito em breve. Parabéns pela resenha, em poucas linhas despertou minha atenção e a de outros leitores.
Obrigado.
José Carlos