Uma das resoluções que resolvi me cobrar esse ano foi a de ler Poesia. Sou leitor compulsivo, mas de romances e de prosa em geral, ficção ou não-ficção. Não estou acostumado com as circunvoluções poéticas. Contemplando a riqueza do livro ou não, estou aqui para tecer algumas linhas sobre a famosa obra de João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina.

A edição da Alfaguara que eu li trazia além de Morte e vida severina (1966), três outros trabalhos do autor: O rio (1954), Paisagens com figuras (1955) e Uma faca só lâmina (1955). Todos os escritos presentes nessa edição, por mais que variem quanto à sua composição e apresentação, giram em torno da situação dos pernambucanos – e nordestinos, em alguma medida – e sua condição de vida precária, extraindo dela suas ramificações filosóficas e literárias.

João Cabral de Melo Neto se volta a Pernambuco e à sua população para mostrar – e denunciar – a miséria de sua vida, envolta, paradoxalmente, num cenário tão duro quanto belo. O solo seco, os férteis rios, a natureza rochosa do relevo que se confunde com a textura da existência, a mata e os canaviais etc. São todos catalisados pelo avanço e manutenção do homem nesse cenário, ora vicejando ora fenecendo.

Em O rio – que possui como subtítulo ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife – Melo Neto se vale do rio pernambucano como narrador para descrever a paisagem, os sujeitos e as coisas que vê em seu caminho. O leito do rio é o caminho (ou seria uma Via Crúcis?) poético que enfeixa os temas e a composição de Melo Neto para a partir dele deslindar um panorama sobre a vida nordestina. Do interior de Pernambuco até o litoral, o Capibaribe não percorre somente um espaço geográfico, mas o tempo, através de um processo histórico. Ele vai do cenário dominado pela mata, arado em pequenos lotes por humildes camponeses para o cenário dominado pelos latifúndios, onde os antigos engenhos dão lugar às novas usinas e onde os canaviais se estendem numa imensidão verde.

O espaço para o homem foi sendo pouco a pouco abocanhado pelos latifundiários, e a cana ocupa o lugar que antes fora do pequeno agricultor e sua família. As usinas, nesse ínterim, aparecem como elemento de desequilíbrio, pois são emblemas da perda da terra:

Vira usinas comer
as terras que iam encontrando;
com grandes canaviais
todas as várzeas ocupando.
O canavial é a boca
com que primeiro vão devorando
matas e capoeiras,
pastos e cercados;
com que devoram a terra
onde um homem plantou seu roçado;
depois os poucos metros
onde ele plantou sua casa;
depois o pouco espaço
de que precisa um homem sentado;
depois os sete palmos
onde ele vai ser enterrado. (p. 33)

Ao longo dessa transformação, os antigos moradores das terras, aqueles que foram expulsos e que agora são obrigados a se submeter aos ditames dos coronéis e latifundiários, deixam de ser homens de carne e osso para se tornarem “homens de bagaço”:

Para trás vai ficando
a triste povoação daquela usina
onde vivem os dentes
com que a fábrica mastiga.
Dentes frágeis, de carne,
que não duram mais de um dia;
dentes são que se comem
ao mastigar para a Companhia;
de gente que, cada ano,
o tempo da safra é que vive,
que, na braça da vida,
tem marcado curto o limite.
Vi homens de bagaço
enquanto por ali discorria;
vi homens de bagaço
que morte úmida embebia. (p. 36)

A tônica que anima O rio – principalmente no que diz respeito à sua crítica social e seu valor de denúncia -, anima também Morte e vida severina, onde um retirante deixa seu pedaço de terra em busca de melhores condições de vida em outro lugar. Tragicamente as melhores condições de vida não são encontradas em lugar algum, pois o estigma da “severinidade” parece pairar sob sua cabeça e determinar seu karma, como transparece nesses versos mórbidos:

– Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
– É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio. (p. 108)

Apesar disso Melo Neto não é um fatalista. Sobrevive nas entrelinhas uma esperança, mais velada do que explícita, que acredita no mistério da vida mais do que sofre com o peso da morte. O mundo está cheio de Severinos, mas não está condenado à “severinidade”. Ela é mais um percalço, duro e espinhoso, que obstrui os caminhos mas que não os fecha por inteiro.

Sem dúvida, João Cabral de Melo Neto é um dos titãs de nossa literatura. Lê-lo me faz sentir mal por não ler mais poesia, pois se ela comporta uma riqueza tamanha como os versos de Melo Neto, só faço perder por nela não me aventurar mais.