O ato de caminhar, como certamente concordaria Thoreau, enseja toda sorte de destinos, tanto externa quanto internamente, em caminhos materiais e em sendas espirituais. Não é o que acontece com Holden Caufield, em O apanhador no campo de centeio? Não é o que move Dante e Virgílio pelos sublimes e aterradores caminhos da Divina comédia? Não é aquilo que, peculiarmente, acaba conseguindo Murakami em suas maratonas? Caminhar, abstrair, refletir, transcender, buscar e prosseguir são processo concomitantes, dialéticos, que integram tanto os exemplos acima citados quanto Cidade aberta, romance de 2011, do escritor nigero-americano Teju Cole (que estará hoje na Flip).

A história nos é contada pelo protagonista, Julius Olatubosun, um jovem estudante de psiquiatria que anda pelas ruas de Nova York pensando em uma porção de assuntos e temas, desde sua pesquisa em andamento até o passado da cidade, de suas raízes nigerianas até sua ex-namorada Nadège. A cadência de seus passos marca o próprio ritmo de seus pensamentos, suas andanças nos proporcionam as divagações de sua mente, como quando ele diz que “Essas caminhadas, um contraponto a meus dias atarefados no hospital, eram cada vez mais demoradas e me levavam cada vez mais longe” (p. 9)

Com a trama anunciando poucas situações-limite ou reviravoltas surpreendentes, é preciso ter talento e ousadia para sustentar a narrativa sem se tornar enfadonho ou egocêntrico demais. Teju Cole lida bem com essa pressão e faz de Cidade aberta um livro tão tematicamente amplo quanto bem construído.

Diante de bloqueios e um sentimento de inércia em relação ao mundo, Julius resolve andar pelas ruas de Nova York em busca de algo que não é possível discernir com certeza. Ele não parece andar à toa, busca instintivamente algo (quem sabe a si próprio) mas encontra na fragmentação do mundo não uma resposta, mas várias. O desafio, portanto, parece ser a capacidade de formular as perguntas certas.

Cidade aberta é todo voltado à construção de Julius e de sua trajetória. O protagonista, entretanto, não é tão individual e específico como pode parecer, sua persona traz à tona conflitos experimentados por muitos, sua busca é a busca que atinge a todos, apareça sob que vestes aparecer. Deixar a Nigéria, passar pela Bélgica, flanar pela Europa, buscar nas origens um direcionamento que não esteja voltado para trás, essa parece ser a jornada imaterial de Julius – e de Cole – em Cidade aberta.

Ao abrir a cidade e perscrutar a trajetória do protagonista, algumas pontas são amarradas e algumas constatações, não pouco incômodas, submergem do caos que constitui a realidade, seja a da cidade seja a da própria história de Julius, como indica sua afirmação a um tempo lúcida e confusa acerca de sua condição:

“Experimentamos a vida como uma continuidade e só depois que ela fica para trás, depois que se torna passado, enxergamos suas descontinuidades. O passado, se tal coisa existe, é em sua maior parte um espaço vazio, uma vasta área de nada, em que flutuam pessoas e acontecimentos importantes.” (p. 189)

É difícil estabelecer uma unidade temática para Cidade aberta, ele parece ser um pouco de tudo: um relato pessoal, uma investigação psicológica acerca de si próprio, o registro mental de uma jornada, a busca de um sujeito por um rumo e uma origem, um diário de viagens, nacionais e internacionais, e assim por diante. À certa altura ele viaja ao lado de uma mulher rumo à Bruxelas, passando a dela ser amigo e discutir detalhes da vida familiar dela (e de sua própria); em outro momento discute com Farouq, um verdadeiro sábio que discute sobre a relação Ocidente e Oriente num diálogo deveras profundo com a tradição intelectual que o antecede; e em outra passagem ele conversa com um antigo professor seu, de Literatura Inglesa, que enfrenta as dificuldades da velhice.

É por isso que podemos encontrar asserções muito interessantes sobre muitas questões, como, por exemplo, a “natureza” das forças históricas em ação:

“Mas a atrocidade não tem nada de novo, não para seres humanos, não para animais. A diferença é que em nosso tempo ela é extraordinariamente bem organizada, praticada com currais, trens de carga, livros de contabilidade, cercas de arame farpado, campos de trabalho, gás. E esta última contribuição, a ausência de corpos. Não havia nenhum corpo visível, exceto os que caíam, no dia em que a Bolsa americana parou.” (p. 74)

sobre os conflitos religiosos:

“O Corão é um texto, disse Farouq, mas as pessoas esquecem que o islã também tem uma história. Não é estático.” (p. 154)

sobre o espinhoso 11/9:

“Não era o primeiro apagamento praticado no local do desastre. Antes de as torres desaparecerem, tinha existido uma frenética rede de ruazinhas que cruzavam essa parte da cidade. Robinson Street, Laurens Street, College Place: tudo isso tinha sido apagado nos anos da década de 1960 para dar lugar aos prédios do World Trade Center, e tudo isso agora estava esquecido. Também se foram o antigo Washington Market, os embarcadouros ativos, as mulheres desbocadas, o enclave de cristãos sírios que se estabeleceu aqui no final do século XIX. Os sírios, os libaneses e outros povos do Oriente foram empurrados para o outro lado do rio, para o Brooklyn, onde lançaram raízes na Atlantic Avenue e em Brooklyn Heights. E antes disso? Que trilhas da tribo lenape jazem enterradas sob os escombros? O local da catástrofe era um palimpsesto, como era toda a cidade, escrita, apagada, reescrita. Houve aqui comunidades antes até de Colombo levantar velas, antes de Verrazano ancorar seus navios nos estreitos, ou do mercador de escravos português Esteban Gómez subir o rio Hudson; seres humanos viveram aqui, construíram casas e brigaram com os vizinhos, muito antes de os holandeses enxergarem uma oportunidade de negócio nas peles e na madeira da ilha e de sua baía calma.’ (p. 75)

Essa cadência se mantém pelo livro todo, destilando pequenas inferências constantemente, construindo percepções passo a passo. Emana da realidade uma “força” que desafia fatalismos, que se impõe apesar das condições e que encanta Cole, como quando ele escreve que “(…) nem se podia imaginar quantas pequenas histórias as pessoas desta cidade inteira levavam consigo.” (p. 188). Por um momento me lembrei do artigo que Marshall Berman escreveu sobre suas andanças pela mesma Nova York de Teju Cole, admirando-se com as pessoas em sua simplicidade.

Cidade aberta deixa, pela sua profusão de questões, um campo enorme de possibilidades para Cole seguir, por isso creio que há muito o que esperar desse autor. E se ele conseguir manter a talentosa narrativa do livro nos que virão, certamente há ainda grandes coisas a serem por ele ditas.