O intuito do título parece ser claro: o poeta quer que se leia o livro como uma obra imatura, de alguém que ainda aprendia a escrever poesia, como se estivesse em uma escola. Pode-se imaginar que essa suposição não é verdadeira, ainda mais se lembrarmos que essa obra foi publicada em 1927 por Oswald de Andrade (1890-1954), portanto já em fase mais avançada do Modernismo brasileiro. A Semana de Arte Moderna já havia acontecido em 1922 e o poeta era uma figura estabelecida na vanguarda literária do país. Não se tratava mais de um iniciante, muito menos de um frequentador de carteiras de colégio. Além disso, esse não era seu primeiro livro de poesia, sendo sucessor de Pau Brasil (1925). Então por que será que esse título foi dado à obra?
Percebe-se que Oswald não queria escrever como uma criança, mas sim evocar sua liberdade da imaginação para a construção de uma nova poesia. Seu aprendizado literário viria da própria experiência com a poesia, sua “escola”, não do que se ditou como poesia até então. Ao mesmo tempo, a fascinação infantil diante do mundo e o próprio desenvolvimento do indivíduo como ser humano pleno em suas capacidades são temas dos poemas do Primeiro caderno. Entre os mais citados estão “as quatro gares”, compostas por quatro composições: “infância”, “adolescência”, “idade adulta” e “velhice”, em que em poucos versos cada fase da vida é traçada de forma irônica e inovadora.
Outro aspecto dos poemas dessa obra é sua concisão: em busca de formas mínimas, Oswald parece buscar nas palavras aquele sentido ideogramático que os concretistas nele evocariam décadas depois. Talvez o melhor exemplo seja outro poema relativamente conhecido do Primeiro caderno, chamado “amor”, cujo único verso é composto por “humor”. Além da evidente rima, temos aqui uma interação entre os vocábulos que acaba por retirar o status único de título de “amor”, que necessariamente precisa ser lido junto com “humor” para a completude sonora da composição. O que talvez pareça um exercício bobo de humor poético, pode ser aqui visto como busca por uma nova poesia em detalhes mínimos, o que permite que composições como “amor” se tornem valorosas na evolução poética do autor.
Essa concisão de poemas da obra se estende a maior parte das composições que a integram, mas não a todas. É notável a presença de algumas maiores, muitas vezes constituídas de longos enjambements, como no caso de “brinquedo”, que se inicia assim: “Roda roda São Paulo / Mando tiro tiro lá // Da minha cidade eu avistava / Uma cidade pequena / Pouca gente passava / Nas ruas. Era uma pena”. A oralidade também é marcante na escrita de “brinquedo”, já que os dois primeiros versos, o refrão do poema, são essencialmente referências a cantigas de infância, muito comumente estruturadas na repetição de palavras (“roda roda”, “mando tiro tiro”). Além disso, ao contrário do que poderia se esperar de um modernista radical como Oswald, temos aqui versos rimados em ABAB, recurso aqui utilizado evidentemente para demonstrar esse “aprendizado” da poesia em todas suas possibilidades formais. A poesia vira brinquedo, experimento, assim como a São Paulo retratada no poema.
Além do aprendizado da poesia, algumas temáticas típicas da primeira geração do Modernismo brasileiro permeiam os versos do Primeiro caderno, nitidamente em poemas como “história pátria”, “enjambement do cozinheiro preto” e “brasil”. Nesse último a busca por uma identidade nacional, composta de todas as suas etnias, é a base para seu desenvolvimento:
O Zé Pereira chegou de caravela
E preguntou pro guarani da mata virgem
– Sois cristão?
– Não. Sou bravo, sou forte, sou filho da Morte
Teterê tetê Quizá Quizá Quecê!
Lá longe a onça resmungava Uu! ua! uu!
O negro zonzo saído da fornalha
Tomou a palavra e respondeu
– Sim pela graça de Deus
Canhem Babá Canhem Babá Cum Cum!
E fizeram o Carnaval
Além dessa interação entre o português colonizador, o índio guarani e o negro africano, também há de se observar a presença forte do diálogo como meio de construção poética (e ainda mais: sem muitas marcas tradicionais da prosa, como “então ele disse”). Por meio desse recurso, a linguagem coloquial toma conta do texto e altera aspectos linguísticos em direção de uma dicção mais oral, ampla e variada (”preguntou”, “pro”, “lá longe” e interjeições vindas de línguas indígenas e africanas). Ao final, o poema, parodicamente narrativo, termina com uma estrutura sintática típica de contação de histórias, com o verso “E fizeram o Carnaval”, que também pode nos remeter aos poemas medievais portugueses, muitas vezes finalizados em uma sentença iniciada em interjeição que prepara para uma conclusão. No caso do poema de Oswald, pode-se dizer que a última ideia não era necessariamente tão previsível quanto nos cantares galego-portugueses ou nos contos infantis.
Também não podemos nos esquecer, é claro, de uma característica marcante não só das obras iniciais de Oswald, mas também de outros modernistas: a valorização da edição e da exploração gráfica do livro de poesia, algo que também seria retomado pelos poetas concretos mais tarde. A capa da primeira edição do Primeiro caderno foi idealizada pelo próprio Oswald com base em um real caderno de exercícios escolares, que exibia ao redor de seu centro desenhos com os nomes dos estados do Brasil. A partir dessa ideia, Tarsila do Amaral desenvolveu uma nova capa, também com nomes de estados (e até de outras denominações geográficas), porém todos grafados erroneamente, como se uma criança ainda em fase de letramento houvesse os escrito. No meio disso tudo, havia o título da obra, que também retoma de maneira distinta a noção de “caderno de exercícios”. Para cada um dos poemas também há um desenho de aparência infantil que retrata algo relativo a cada composição, porém esses são de autoria do próprio poeta.
No caso da edição a que tive acesso, a mais recente lançada pela Editora Globo em 2006, também temos textos introdutórios ótimos de Augusto de Campos, Raúl Antelo e João Ribeiro, sendo esse último uma resenha da época da publicação da primeira edição. Além disso, é relevante lembrar que essa edição se trata de um cotejo entre a primeira e a segunda versões da obra, que possuem ligeiras diferenças entre si, que em certos casos podem alterar a interpretação de um poema. Essa edição foi feito por Haroldo de Campos, que também é responsável por notas explicativas desse trabalho dispostas ao longo das páginas da obra.
No mesmo espírito vanguardista de outros poemas seus, Oswald nos apresenta uma obra que toma aspectos estabelecidos da cultura burguesa, como a educação moral e cívica, para transformá-los em arte libertária por meios aparentemente simples, porém muito bem elaborados. Para fins de curiosidade e melhor entendimento do ideal gráfico, apresento aqui finalmente a capa da primeira edição, desenhada por Tarsila: