O título é de livro de autoajuda? É. Tem cara de autoajuda? Tem. Pode ser lido como autoajuda? Pode. É apenas autoajuda então? Agora você fez a pergunta certa: uma resposta cordata diria que “depende do leitor”.

Da felicidade – seguido de A vida retirada, recém-lançado pela L&PM Pocket numa coleção convidativa de tão baratinha (todos os títulos da Coleção 64 páginas custam apenas 5 cruzados novos), foi escrito por Sêneca – filósofo, dramaturgo e político – há quase dois milênios. Foi traduzido diretamente do latim. E dá vários indicativos do apelo ao filão literário conhecido como autoajuda: a escolha do pequeno texto para figurar como principal (com o sugestivo título Da felicidade), a plácida capa com uma foto do amanhecer do sol sobre verdes campos, a frase de destaque na quarta capa – “A importância da reflexão para ser feliz” – e o trecho escolhido para a mesma são alguns deles.

Podes dizer: “Falas de uma maneira e ages de outra”. Essas mesmas censuras, ó espíritos malignos e agressivos, contra indivíduos de virtudes, também foram feitas a Platão, Epicuro e Zenão. Eles também não procuravam apregoar o modo como viviam e, sim, o modo como se devia viver. Eis o motivo por que não estou falando de mim, mas da vida virtuosa em si. Quando falo contra os vícios, estou reprovando, em primeiro lugar, os meus. Portanto, se for possível, procurarei viver corretamente.

Quanto ao conteúdo, o leitor pode tratá-lo do mesmo modo que o seu habitual trato dos livros do ramo. Há uma série de conselhos interessantes – alguns deles, inclusive, subvertem alguns ditados populares (mas isso, convenhamos, não o distingue do filão, que costuma utilizar-se desse expediente com certa frequência) – que podem ser lidos: (1) com fervor, transformados numa lista e seguidos à risca, sempre lembrados como mantras; (2) rapidamente, esperando-se mudanças imediatas, que, imaginem só, não vêm; (3) como se ouve os sermões dos pais, que entram por um ouvido e saem pelo outro, sendo então descartados como balelas; ou (4) com certo desdém, por não dizerem nada de novo àqueles que tem uma capacidade maior de pensar suas existências.

Nas formas de leitura explicitadas, há o risco, contudo, de não se dar a devida atenção a trechos como os que pontuam esta resenha.

“Os filósofos não fazem o que dizem.” É verdade que já fazem muita coisa quando falam e pensam honestamente. Se o comportamento deles fosse adequado às suas palavras, quem seria mais feliz que eles?

O “depende do leitor” do início do texto se deve à admissão de algo que, creio, o atual leitor costumeiro de autoajuda não deve perdoar: o “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. As pessoas querem que “o segredo” seja exposto ao mundo por alguém que ficou milionário expondo esse segredo. Afinal, quem compraria um livro de “gerenciamento de conflitos” de uma louca que grita com seus subordinados? Ou um livro a respeito de “parar de fumar” escrito por um cara que (lógico que a editora omitirá a informação) morreu de enfisema pulmonar? Ou um livro que informa como ser um professor melhor escrito por um senhor preso por… pedofilia?

Responderei logo às críticas e acusações que me fazes. Além disso, vou fazer mais objeções do que imaginas. Agora te responderei isto: “Eu não sou um sábio e, para que a tua malevolência se regozije, nunca serei.”

É por isso que não exijo ser igual aos melhores, apenas melhor que os maus. Basta-me que, a cada dia, eu corte um pouco os meus vícios e castigue os meus erros.

Não estou curado nem ficarei de todo sadio. Tomo mais calmante que remédios para o mal de gota e dou-me por feliz se os ataques são mais esporádicos, e as dores, um pouco menos dolorosas. Seja como for, comparado com tua caminhada, eu, mesmo impotente, ainda assim sou um corredor.

As críticas que se poderia fazer teriam muito sentido em geral, principalmente se pensarmos num escritor como o personagem que é o pai da Pequena Miss Sunshine, filme que arrebatou plateias no mundo inteiro. Não é o caso de Sêneca. Com franqueza insuspeita ele põe em seu texto as acusações que lhe faziam naquela época e as rebate, com mais palavras do que as que foram transcritas. E isso não seria visto facilmente em um livro contemporâneo, um livro do filão.

E para não terminar o texto sem dar algum gostinho de tudo quanto Sêneca fala no livro, transcrevo um pequeno trecho de Da vida retirada como exemplo.

Por exemplo, dentre todos os males, o pior de todos é quando resolvemos mudar nossos defeitos. Passar de uma coisa para outra pode agradar, mas, ao mesmo tempo, é vergonhoso, uma vez que nossas decisões tornam-se levianas. Hesitamos e somos levados para cá e para lá. Abrimos mão de nossos anseios, reclamamos do que abandonamos, as mudanças se alternam entre a nossa ambição e o nosso arrependimento.