Demian é definitivamente um livro que indico veementemente a todos e que possui uma sensibilidade humanista para tratar de intricadas questões concernentes ao processo de amadurecimento e do “tornar-se humano” que considero prolíficas para compreender-se enquanto criatura bem como para inspirar qualquer um que tenha sido afetado pelo mistério que ronda a espécie humana e sua caminhada histórica.

Tenho que confessar que Demian foi uma das leituras mais prolíficas que já fiz. Quando terminei de ler pensei comigo mesmo que esse livro geraria ótimas discussões em um Clube da Leitura, pois congrega fatores dos mais diversos que permitem aborda-lo de maneiras diversos, a partir de vários âmbitos e através de vários aspectos. Não que isso seja exclusividade dele (seria tolice pensar tal coisa), mas talvez seja aquela coisa da qual a Anica costuma falar: há um momento certo para que se leia um clássico (Demian, aliás, nem é tão clássico assim), creio que era meu momento de ler Demian.

A obra de Hermann Hesse, Nobel de Literatura em 1946, foi escrita em 1919 e conta a história de Emil Sinclair e como ele passou da sua infância idílica e inocente para o mundo adulto, marcado pela instabilidade e pela necessidade de enrijecimento espiritual para agüentar os solavancos das mudanças históricas e sociais, ainda mais no contexto político intrincado que antecede a Primeira Guerra Mundial (a obra foi publicada depois do conflito, mas a história se passa às vésperas de 1914).

Emil Sinclair é um jovem que ainda vive na tenra infância em casa paterna, confortável e despreocupadamente, porém, um novo aluno no colégio, de nome Demian, parece alimentar por ele uma discreta simpatia, ao passo que Sinclair resolve com ele travar um diálogo. Demian se mostra amigável e misterioso, falando em enigmas que procuram despertar Sinclair para uma nova realidade.

Demian resgata a tradição literária alemã do bildungsroman (o famoso “romance de formação”) trazendo-a para o contexto da crise do novecentismo alemão, que no pós-guerra enfrentava a amarga derrota e o clima de pessimismo que ronda a mentalidade. A Primeira Guerra representou mais do que um conflito de proporções materiais, ele abalroou o espírito alemão do pré-guerra e lançou por terra algumas das premissas nacionalistas de progresso e superioridade alemãs. Hesse encontrou nos escombros da Alemanha o fértil terreno para que sua literatura aflorasse.

Hesse chegou a alistar-se no exército, mas trabalhou com os feridos e não no front de batalha (ao contrário de Remarque, autor de Nada de novo no front, um clássico da literatura pós-guerra alemã), ao passo que após um tempo em que vivenciou através das macas e caixões os horrores da guerra, resolveu exilar-se na Suíça, mesmo tendo dirigido palavras contra a imbecilidade da guerra.

Demian representa a mão misteriosa que conduz Sinclair rumo a sua nova condição e a esse novo mundo que a ele se apresenta. Porém, essa transição não acontece rapidamente nem de forma fácil, ela é um rito de passagem, um batismo de fogo em que Sinclair vai aos poucos ganhando consciência de sua posição no mundo e de seu compromisso enquanto membro da humanidade.

No pórtico da casa de Sinclair há um brasão que retrata uma ave, essa ave serve de metáfora para que Demian faça despertar em Sinclair a compreensão de que para que a ave possa voar, é preciso que a casca do ovo se rompa, ou, para que Sinclair se torne um adulto no sentido lato do termo é preciso romper com os moralismos e convenções a que está preso, é preciso que ele extravase a esfera do mundo infantil para que possa, pleno e consciente, adentrar nos domínios do mundo adulto e da sociedade humana como um todo.

Contudo, o bildungsroman aparece não somente a nível individual, representando a situação de Sinclair, mas também, em âmbito mais abrangente, a situação da humanidade a nível espiritual. A Guerra foi um evento que dilacerou as gerações posteriores por destruir um mundo e lançar as bases de outro. A guerra, usando a metáfora de Demian, rompeu a casca do ovo para despertar para um novo momento para a humanidade, e Hesse coloca-se então como entusiasta e esperançoso desse mundo, que, viria a ser trucidado novamente com a Segunda Guerra Mundial.

Usando simplificações um tanto grosseiras, podemos dizer que a mentalidade germânica do pré-guerra, principalmente depois da guerra Franco-prussiana de 1870, estava em grande parte voltada para o nacionalismo, exaltação da pátria e das virtudes alemãs, as quais deveriam ter espaço nas novas fronteiras que estavam se desenhando desde meados do século XIX com o avanço das potências imperialistas. A unificação alemã, fomentando um espírito nacionalista, apoiada sobre os pilares do positivismo e gozando de uma vertiginoso crescimento econômico, catalisou as forças habitantes do território alemão para reivindicar seu lugar entre as nações a todo custo, mesmo que tivesse que atirar-se a uma guerra para isso.

Esse “novecentismo” alemão, belicoso e ufanista, construiu uma geração voltada à defesa da pátria e da nação acima da humanidade (como o fazem as mentalidades nacionalistas em geral), acirrando as animosidades e o “espírito guerreiro”, deixando a Alemanha (e toda a Europa, amarrada em acordos e uma diplomacia na corda bamba) a beira do conflito mundial, que veio a explodir em 1914.

Hermann Hesse estava vivenciando esse contexto incerto quando escreveu Demian, e muito dessa realidade foi transposta direta ou indiretamente para a obra em questão. Demian assume o papel de guia espiritual, um catalisador dos questionamentos que de alguma forma, mesmo que suavemente, perturbavam Sinclair. Um dos pontos mais interessantes da transição de Sinclair é a forma como vai se apresentando a ele: não somente através de suas faculdades racionais, de sua observação perspicaz do mundo, mas também através da linguagem onírica (influência de Jung e Freud), intimista, como uma percepção não pautada nas estruturas explicativas gerais, mas em uma compreensão transcendental e que parece fluir de dentro para fora, na qual a realidade atua apenas como dispositivo, como fator de desencadeamento, que somente abre as comportas do espírito que logo jorra pela personalidade e alma de Sinclair.

O humanismo da obra de Hesse não é uma marca estritamente sua, mas está ligada a outros fatores sociais e artísticos mais abrangentes no momento histórico em que ele vivia: o expressionismo. Esse movimento chegou nas artes européias nos inícios do século XX, buscando trazer de volta a individualidade não em seu sentido mesquinho e fechado, mas sim no resgate do indivíduo, do ser humano massificado pelo afã industrialista que movia as engrenagens da Europa a todo o vapor. Nesse ambiente de anonimato massivo, onde o homem encontrava-se “instrumentalizado” dentro dos moldes capitalistas, vivendo no marasmo da estabilidade do mundo burguês, o expressionismo surge como tentativa de romper com as cadeias que prendiam o ser humano, buscando o que vem de dentro, o que nos torna humanos e não mera carne. O materialismo dá lugar ao espiritualismo, uma busca de colocar o ser humano em contato com sua essência, com seu distintivo espiritual, a transcendentalidade que o separa das demais criaturas que habitam a Terra.

A constatação parece ser um dos principais pontos em que Demian insiste em fazer Sinclair compreender. Nesse mundo marcado por um quase culto a vida regrada, demarcada e praticamente ditada por convenções, moralismos e planejamentos racionais previsíveis e constantes; a transição sofrida, adversa e plena de obstáculos, renúncias e profundas reflexões aparece como processo desequilibrador, que atenta contra concepções automatizadas e faz o ser humano abrir sua mente para uma nova realidade, uma nova forma de enxergar o mundo, uma nova forma de com ele relacionar-se.

Não à toa, portanto, que Hesse tenha escrito Sidarta. Imaginem qual não deve ter sido a sensação do autor ao entrar em contato com a filosofia e a sabedoria indianas. O reconhecimento de um elo espiritual que une a todos os seres humanos, que os faz serem mais do que seres mortais feitos de carne, mas criaturas cujo invólucro carnal é apenas a parte mortal, já que o espírito e as marcas que deixamos na História, essas nos garantem a eternidade.

Demian é obra capital do expressionismo, exprime o interior do autor, garante a expressividade máxima de seus anseios individuais, humanistas e universais em comunhão plena dentro de um processo de tornar-se humano. Demian parece ser a voz que ecoa dentro de nós exortando-nos a tomarmos a responsabilidade de conscientizarmo-nos de nossa humanidade e de que possuímos um papel dentro dessa espécie.

O expressionismo materializou os anseios de expressividade que jaziam latentes nos espíritos dos sujeitos que vivenciaram tão singular período histórico, o “fin-de-siécle” e o novo século que se anunciava. O idealismo e sentimentalismo românticos já não davam conta de exprimir tais perturbações e buscas de liberdade, mesmo que a tradição já contasse com nomes de peso como Goethe. A vertente realista-naturalista de racionalismo e busca incessante dos caracteres sociológicos e investigação histórica, social e material parecia por demais árida a intentos tão “transcendentalistas” (guardadas as devidas proporções da utilização dessa definição) e inspirados em espiritualidade. A necessidade de algo novo, uma nova linguagem, baseada em novos preceitos, em novas abordagens, com nova sensibilidade veio a temperar os espíritos e as idéias dos expressionistas, que, não renegando as benesses de ambas as linguagens, questões e estilos dos quais são herdeiros, deram nova forma e criaram as bases do expressionismo.

Constatações tenebrosas, enfrentamentos dilacerantes, necessidade de deglutir ou trazer a consciência certos eventos e certas transformações da História da humanidade se tornaram o combustível desses artistas, desde pintores até músicos, de literatos a dramaturgos. Apesar da contundência das obras expressionistas, elas eram regadas a um profundo humanismo, que buscava trazer novamente a pauta uma sensibilidade espiritual e a centelha divina/transcendental que parecia ter sido renegada pelo viés naturalista/realista de construção literária.

Há um momento na obra em que Demian diz que nada pode impedir alguém quando sua vontade é levada a cabo. Esse trecho parece soar como simplista e dependendo do leitor até como auto-ajuda barata. Mas creio que essa exortação da vontade constitui no esforço compreensível de mostrar que os rumos que a humanidade percorriam eram passíveis de mudança, não eram naturais, arraigados ao DNA humano, mas sim construções sócio-históricas, que poderiam ser transformadas pelas mãos humanas.

Vale lembrar que mesmo passando-se na véspera da Primeira Guerra Mundial, o livro foi escrito quando as pilha de escombros ainda se avolumavam pela Europa. O fantasmagórico limiar a que a humanidade tinha chegado com o conflito de proporções nunca vistas até então (ainda mais sendo Hesse alemão e vivenciando a situação adversa e desconfortável de culpabilidade que foi imputada a Alemanha no pós-guerra) mobilizou a escrita de Hesse, que fez dela uso para reforçar essa questão.

Toda essa jornada intimista e introspectiva que marca o romance e as transformações pelas quais passa Sinclair, encontra-se evidenciada também quando esse, através da linguagem onírica, percebe-se voando sem controle, temeroso do possível desastre que pode advir desse vôo errante. Porém, ao conversar com Demian a respeito desse sonho, Sinclair descobre que o vôo é justamente a transcendentalidade proporcionada pelo espírito, em que o controle da “habilidade de vôo” se dá conforme ele vai se apossando e fazendo uso da herança cultural da humanidade para tornar-se cada vez mais humano, mais preparado para enfrentar os dilemas e desafios que os novos tempos apresentavam.

Muito do que se encontra no livro não pode ser “absorvido” (talvez a palavra certa seja compreendido) a não ser através da sensibilidade do leitor, que deve entregar-se a contemplação e o cotejo da transfiguração do ingênuo Sinclair em um ser humano em contato com suas potencialidades e sua aura imortal. O processo é complexo, desequilibrador e infinitamente subjetivo; mas é uma transformação necessário que é exortada todo o tempo por Hesse, que subjacentemente a apregoa como transição necessária para que a humanidade encontre novos caminhos e possa construir novos mundos e racionalidades sensíveis diversas das que marcaram os rumos da História até aquele momento.

Hesse oferece ainda diversas passagens em que perscruta o que ele chama de ‘sinal de Caim’ o que, colocando em outras palavras, é como uma marca presente naqueles que conseguem levar a cabo suas atitudes e viver de acordo com suas concepções e princípios, ainda que não necessariamente resulte disso produtos necessariamente bons.

Caim, na concepção mais difundida, é conhecido como o assassino de Abel; mas Hesse constrói uma nova interpretação sobre os significados da atitude de Caim, dizendo que ela é o indício de um tipo diferente de pessoa, que mesmo errada sob diversos pontos de vista, conseguiu concretizar seus intentos. Caim não é visto não somente como o assassino de Abel, mas alguém cujas crenças foram seguidas e respeitadas até o fim, pois não ficou lamentando-se pelo não-feito, mas avaliando o realizado. A exortação da vontade como força motora da História e potencial de transformação.

O sinal de Caim serve ainda para compreender outro aspecto interessante da obra em questão: a guerra a nível de evento espiritual que se refere a todos os seres humanos em alguma medida. A Primeira Guerra Mundial foi um evento que abalou profundamente a forma como o mundo se organizava e se entendia até então, seja no sentido filosófico e histórico, seja no material, político, econômico, social etc. Ela representou um momento único e terrível em que a realidade foi chacoalhada como forma de mostrar que algo estava muito errado.

Justamente essa característica catalisadora de atenção das pessoas, como evento de proporções nunca antes vistas, que alterou de forma tão significativa a realidade, é que a Primeira Guerra, para Hesse, desdobrou-se também no ‘campo espiritual’, evidenciando a necessidade de mudança e a urgência do nascimento de um novo ‘tipo’ de ser humano, iluminado por uma nova concepção de vida.

Logo, do flagelo que foi a Primeira Guerra, se poderia retirar alguma lição, havia, do ponto de vista pragmático, valor a ser considerado nesse evento catastrófico; uma lição dura, que resultou na perda de milhões de vidas e na destruição do cenário europeu em larga escala, mas que apresentava uma oportunidade de rever concepções e valores, reavaliar a experiência e a forma como vinham sendo conduzidas as sociedades e suas racionalidades.

O valor que Hesse buscou trazer a tona e interpretar através de Demian é justamente o de repensar, de voltar os olhos para o passado e tê-lo como parâmetro para o presente, para repeti-lo ou evitá-lo. Hesse, nesse sentido, atua através da concepção da literatura como “dispositivo” de consciência histórica e de transformação da realidade.

A transformação, levando em conta as lições de Demian, deveria se dar na consciência dos homens, nas suas noções de História, na maneira como as condutas, códigos morais e estruturas éticas estavam organizadas: deveria haver uma nova mentalidade, um novo zeitgeist, um novo ethos, em que o espírito livre, o pássaro que rompe a casca do ovo, possa existir e transcender, mostrar toda a sua beleza e sua potencialidade.

Assim como Sinclair deveria romper a casca do ovo que era seu mundo infantil, cerceado pelas limitações morais e paternas; também a humanidade deveria romper com a moralidade e ethos que fizeram estourar o espetáculo hediondo que foi a guerra. Para manter-me nas metáforas ornitófilas, dá para dizer que Demian sintetiza a expectativa de Hesse sobre um renascer, onde das pilhas de escombros e cinzas da Europa pós-Primeira Guerra Mundial, uma fênix deveria ressurgir, mostrando todo o seu resplendor e construindo uma nova realidade e uma renovação espiritual, da qual Hesse seria arauto.