O antissemitismo é uma espécie de fantasma terrível: por um lado é uma herança que a Europa (e, num sentido mais lato, as civilizações de gênese europeia de modo geral) aprendeu a rejeitar, mas que ainda não sabe exatamente como lidar – já que volta e meia surgem indivíduos e grupos neonazistas, revisionistas e outros cuja mera existência é preocupante, como os partidos políticos ‘Hungria Melhor’ e ‘Amanhecer Dourado’, respectivamente na Hungria e na Grécia; por outro, tornou-se um termo que é usado de modo descuidado pela extrema direita de Israel, que etiqueta todos os seus opositores (entre os quais figuram quase todos os movimentos árabes, o escritor alemão Günter Grass e até mesmo muitos membros da esquerda israelense) como ‘antissemitas’.

Se hoje isso é um problema a ser debatido e trabalhado, no século XIX a realidade era outra. Antes do advento da Shoah, a relação dos gentios com os judeus era outra: o antissemitismo era praticamente a norma e, muitas vezes, sua prática podia passar desapercebida por alguns que se proclamavam isentos de preconceitos ou ‘amigos dos judeus’. Um bom exemplo disso é Charles Dickens: ajudava os judeus pobres da Inglaterra e combatia, em alguns textos, o preconceito, mas ainda assim criou figuras como Fagin – o criminoso judeu que obriga Oliver Twist e outros meninos a roubar.

E foi essa percepção que levou Will Eisner a escrever Fagin, o Judeu, obra que não é nada mais do que uma defesa não apenas de Fagin, mas dos judeus e, porque não, de todos os grupos que são desapercebidamente alvo do preconceito daqueles que detém os privilégios.  E a tática para fazê-lo foi bastante simples: o quadrinho é uma espécie de autobiografia do criminoso judeu de Dickens.

Como de praxe nesse tipo de coisa, a história começa na infância do narrador. Fagin conta sua sobrevivência nos subúrbios de Londres, onde os judeus pobres – à época, em sua maioria asquenazitas vindos da Europa Centro Oriental – meramente subsistiam, com vidas de uma precariedade bastante evidente. Conta a morte de seu pai, assinado após ganhar e cobrar uma aposta (ironicamente apostara num boxeador judeu, contra um gentio) e como teve de sustentar a mãe depois. Foi aí que ‘iniciou’ sua ‘carreira criminosa’ pois, sendo muito novo e pouco instruído, o fazia através de pequenos roubos de comida e remédios.

Pouco depois, porém, a mãe de Fagin morre e um rabino lhe arranja um emprego na casa de um rico sefardita (judeu de ascendência ibérica),  o Sr. Eleazar Salomão. Por um momento, sua vida parece promissora, mas um deslize – um caso amoroso com a filha de um dos sócios do Sr. Salomão – e alguns mal entendidos lhe jogam novamente nas ruas.

A partir daí o drama volta a ser a tônica dominante da vida de Fagin. Volta ao crime, acaba sendo preso e condenado ao degredo nas colônias, quase tem sorte de novo algumas vezes, mas seu destino sempre acaba sendo a frustração, humilhação e a precariedade. De volta a Inglaterra associa-se a um criminoso inglês chamado Sikes – e o resto é mais ou menos a visão de Fagin para a história de Oliver Twist.

Certamente a versão de Eisner é mais fiel à realidade enfrentada pelos judeus da época do que o retrato pintado por Dickens. Obviamente que uma comparação simplista assim seria anacrônica, já que Eisner escreveu Fagin em 2003 e Oliver Twist foi publicado em 1838. Mas acredito que esse tipo de revisitação crítica seja bastante frutífera – muito mais do que censurar ou que apenas perdoar Dickens como fruto de seu tempo.

Separo as últimas linhas da resenha para uma outra comparação, que é bastante demonstrativa dos espíritos das duas obras: a primeira edição de Oliver Twist contava com ilustrações de George Cruikshank. Nelas Fagin é o estereótipo judeu, com cabelo e barba escuros, nariz longo e encurvado. Era o modo como todo e qualquer ilustrador representaria um judeu no século XIX (e boa parte do XX), e o modo como o público faria o reconhecimento mais imediato da personagem como sendo de origem judaica.

Ora, esse estereótipo apoia-se, em linhas gerais, nas feições dos sefarditas. Fagin muito provavelmente – como nos explica Eisner em seu posfácio – era de origem asquenazita e não corresponderia a essa imagem: mais provavelmente teria feições germânicas, quiçá até cabelos e olhos claros. E Eisner busca afastar-se da imagem criada por Cruikshank, em nome de uma representação que se lhe afigura mais fiel – e menos preconceituosa.