Mark Twain é o escritor da jovem América. Um dos pioneiros no sentido de se libertar das convenções estilísticas da literatura inglesa e um dos primeiros a tomar como personagens em seus livros os habitantes comuns dos Estados Unidos, principalmente aqueles que não mantinham contato nem convicções pessoais favoráveis à mentalidade e ao estilo de vida puritano. Os Estados Unidos tinham conquistado sua independência formal em 1776, e o século XIX foi determinante para que sua identidade, suas peculiaridades e suas próprias feições se desenhassem com mais clareza. Um longo processo de constituição de uma espécie de “mitologia nacional” foi levado à cabo ao longo de todo o século de Mark Twain, e ele certamente não ficou de fora dessa constituição identitária. É de sua cria dois dos mais emblemáticos personagens da literatura norte-americana: Tom Sawyer e Huckleberry Finn.

Nas palavras de Ítalo Calvino:

“E hoje, reconhecendo-lhe o título de folk-writer ou contador de histórias da tribo – aquela tribo multiplicada em escala imensa que a América da sua juventude -, não é só o mérito de divertir que se lhe atribuiu, mas o de ter reunido um estoque de materiais de construção do sistema mitológico e fabular dos Estados Unidos, um arsenal de instrumentos narrativos de que a nação necessitava para ter uma imagem de si mesma.” (p. 166)

Ainda que eu tenha um apreço especial por Huck, Tom Sawyer é um dos mais conhecidos e celebrados personagens da ficção norte-americana. Passagens antológicas como aquela em que ele usa de sua malandragem para convencer outras crianças a pintarem a cerca para ele ou as passagens em que ele e Huck passam a viver em uma ilhota no meio do Mississipi já estão imortalizadas nas mentes e nos corações dos norte-americanos. São todas facetas de uma história popular e picaresca, que juntou a vida às margens do Mississipi à circunstância literária para narrar as vicissitudes, o cotidiano e o que há de mais típico dos Estados Unidos.

As aventuras de Tom Sawyer (publicado em 1876) segue aquele estilo de Twain, que é o de narrar diversos eventos, dotando o livro de um ritmo todo especial; e da junção deles formar a trama como um todo. Não há tanta preocupação com a trama geral, mas há um preciosismo satírico em cada uma das pequenas partes que forma o todo. Olhando panoramicamente não parece haver grandes questões que perpassam o livro como um todo, mas as mini-tramas estão repletas de pequenas aventuras e descobertas num mundo de crianças transbordando de feições adultas.

Tom Sawyer vivia na vila de São Petersburgo com sua Tia Polly – um misto de ingenuidade puritana e disciplina maternal – e com seu meio-irmão Sid. O cotidiano do protagonista se passa entre a escola – onde nutria um amor juvenil por Becky Thatcher -, a casa e as aventuras dele com Huckleberry Finn e Joe Harper. É ali que Tom apronta suas travessuras nas aulas de catecismo, explora casas abandonadas, brinca de ser pirata, faz de conta que é Robin Hood, vive momentos tensos com o ladrão Injun Joe e demonstra toda a sua frustração com as composições escolares ingênuas, e demasiadamente formais de seus colegas e assim por diante.

Sob vários aspectos, As aventuras de Tom Sawyer é um mosaico da vida norte-americana no século XIX, em especial nas pequenas vilas à beira do Mississipi, com seus vigaristas, seus vagabundos, seus escravos, suas classes puritanas, seus barcos pesqueiros, suas promessas de aventura e suas próprias leis morais e mentalidades. Como em As aventuras de Huckleberry Finn, o romance de Tom Sawyer é um documento histórico de primeira grandeza, recheado de valiosas informações sobre os Estados Unidos do século XIX e sobre a visão de Twain sobre aquele mundo pelo qual nutria tanto afeto.

Os Estados Unidos eram uma jovem nação, não à toa que Huck e Tom sejam crianças, que ainda não definira seu caráter propriamente dito – em alguma medida nenhuma nação o faz completamente -, mas estavam em formação, buscando rumos e experiências que os fizessem se firmar. Tom e Huck são o próprio país em vias de se construir, e sob certo ponto de vista os dois romances são bildungsromans, não somente de caráter individual, mas com algumas ramificações de vulto nacional.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.