Publicado na Inglaterra em 1884 (e nos Estados Unidos em 1885), As aventuras de Huckleberry Finn, do escritor norte-americano Mark Twain, é um daqueles livros que, pelo seu brilhantismo e seu caráter emblemático e perspicaz em retratar ficcionalmente a realidade, ganharam lugar de destaque no cânone universal. Ao lado de seus conterrâneos Moby Dick, As vinhas da ira e O grande Gatsby. Não à toa, também, que tenha reverberada tão profundamente na obra de Ernest Hemingway e na do próprio Steinbeck.

O autor, Mark Twain (pseudônimo de Samuel Longhorn Clemens) teve uma vida tão aventurosa quanto a de seus personagens mais famosos, Huckleberry Finn e Tom Sawyer. Meteu-se em viagens, investiu em invenções, faliu, visitou um sem-número de lugares, interessou-se pelos mais diversos assuntos, serviu durante a Guerra de Secessão. Cultivou ao longo da vida um senso de humor elástico o suficiente para acolher em seu seio desde a mais ácida mordacidade até a mais acolhedora humanidade.

O romance de 1884 não conquistou seu lugar no cânone norte-americano à toa, trata-se de uma obra que reúne o que há de melhor quando se trata de Mark Twain: sua veia satírica, seu talento narrativo, sua simpatia pelas traquinagens juvenis e a perspicácia que caracteriza os grandes romancistas quando trata-se de enfeixar destinos individuais e estruturas sociais e históricas num corpo literário.

Quem narra a história é o próprio Huck. Ele vive numa cidadezinha do Missouri onde divide seu dia a dia com seu amigo Tom Sawyer, o escravo Jim, crianças e rapazolas que por ali vivem. Possuindo uma vida monótona, marcada pelas investidas “civilizadoras” e cristãs da viúva Douglas e de Miss Watson e pela falta de acolhida de seu ébrio pai, Huck decide que forjará sua própria morte para poder livrar-se de sua antiga existência, passando a levar uma vida completamente diferente daquela com a qual estava acostumado.

Após sua ardilosa “morte”, ele passa a se esconder pelas margens do caudaloso rio Mississipi, onde dá de cara com Jim, o escravo da viúva Douglas com quem convivia. Depois de esclarecer que não era uma alma penada, Huckleberry Finn propõe a Jim que construam uma jangada e nela embarquem para se tornarem uma espécie de piratas do rio e viveriam aventuras dignas de sua bravura.

O livro todo, portanto, se desenrola em torno dessa picaresca viagem que a dupla empreende, todos os eventos que se encontram narrados no livro se deram às beiras do Mississipi ou ao longo de toda a sua extensão. E não são poucas as aventuras dos dois: eles ludibriam outros em troca de comida, conhecem andarilhos que fazem espetáculos e apresentações para sobreviver, entram numa contenda de famílias, encontram barcos afundados, enfrentam ladrões com esperteza e muita sorte, fogem de cativeiros e assim por diante.

Ao longo dessa viagem Mark Twain vai decantando e analisando, com um timing e uma sensibilidade fascinantes, diversas facetas da sociedade norte-americana do período. Os elementos constituintes daquele arranjo sócio-histórico vão sendo descritos e analisados, não na cadência científica ou sociológica, mas num exercício de narrativa ficcional com muito bom humor e mordacidade, fugindo a certas rijezas e formalidades, pois, como escreveu Calvino:

“Na base de tudo encontra-se sua opção pelo prosaico contra o poético: mantendo-se fiel a esse código, ele consegue pela primeira vez dar voz e forma à surda consistência da vida prática americana (…)” (p. 168) (CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.)

O escravismo, por exemplo, lhes aparece na forma de fazendeiros do sul do país, que aprisionam Jim exigindo a intervenção de Huck e Tom Sawyer numa fuga à Dumas. A estrita moralidade puritana e cristã ganha vida nas práticas e nas concepções da viúva Douglas e de Miss Watson, que não se encaixam em definitivo à educação mundana de Huck, e cuja sustentação Mark Twain especialmente satiriza. A navegação do Mississipi e as famosas barcaças a vapor são mostradas com um certo romantismo, como rincão onde a antiga aventura ainda não foi varrida pela rigidez moral e econômica dos novos tempos. As contendas em torno da disputa de terras, inflamadas por uma insularização familiar característica das comunidades mais provincianas dos Estados Unidos da época, também têm seu lugar na obra, ao lado de inúmeros outros retratos do período.

Numa história rocambolesca que lembra as aventuras dickensianas de Oliver Twist, Mark Twain conduz o leitor por uma jornada em meio a sociedade estadunidense em suas disputas e dinâmicas. Os ricos e os pobres, os homens e as mulheres, os sulistas e nortistas, os negros e os brancos, os adultos e as crianças e assim por diante. Está tudo lá, costurado bem ao lado de cada peripécia de Huck, Jim e Tom pela arguta e deliciosa prosa de Mark Twain.