De fato, Osman Lins é um escritor único no panorama da literatura brasileira. Difícil a leitura de suas obras talvez, mas ainda assim prazerosa. Quem sabe seja prazerosa justamente pela dificuldade, pela novidade. Um de seus livros mais famosos, Nove, novena (1966) é uma dessas “novidades” de Osman. Vindo de Pernambuco, o autor parece ir além do romance regionalista da década de 1930 e já na metade do século XX ditar novas tendências para a prosa nacional.

Ainda que o Recife, o sertão, a cultura religiosa e as cidades coloniais figurem a todo tempo em suas narrativas, não temos em Nove, novena estereótipos dessa região do país, sendo uma espécie de exploração do “exótico” para o leitor das grandes metrópoles. Sua literatura, considerada por muitos como “rigorosa” e “bem calculada”, nos lembra tendências literárias francesas da época, como a OuLiPo (Ouvroir de littérature potentielle) e o Nouveau Roman, bem conhecidos pelo autor.

É fato que boa parte da crítica nacional e estrangeira recepcionou Nove, novena e obras posteriores, como o grande romance Avalovara (1973), como reflexos dessas experiências estéticas, porém hoje em dia já temos a clareza de que a obra de Osman não pode ser simplificada a tal ponto. O escritor não tinha intenções necessariamente vanguardistas, não pretendia sugerir um modelo estético a ser seguido nem revolucionar a literatura brasileira. No entanto, é notável sua ligação com muitas experiências literárias até então realizadas, como as francesas já citadas e até textos poéticos modernistas.

O exercício de geômetra e o lirismo de suas narrativas em Nove, novena nos faz crer que nos encontrarmos na fronteira (muito atenuada) entre prosa e poesia. É uma obra composta justamente de nove “narrativas” (na denominação dada pelo autor) que de certa maneira mantêm uma coerência entre si em diversos aspectos, sejam de forma ou de conteúdo. Cada narrativa parece se constituir de forma distinta das outras, explorando elementos gráficos alternativos, diálogos de personagens não identificadas e textos com enfoque puramente nominal. A quebra da linearidade do enredo, ou melhor, a ausência do enredo clássico em certos textos é outro fato que chama a atenção do leitor. O que temos muitas vezes são relações entre as personagens ou a exposição de um cenário em sua multiplicidade, o que abre um leque quase infinito de interpretações da parte do leitor. A objetividade dessa forma “calculada” das narrativas parece nos levar a um universo subjetivo.

Em vários textos prevalece o uso de formas geométricas pequenas no início de sentenças para marcar ora o discurso de uma personagem, do narrador ou do ponto de vista de um narrador em primeira pessoa. Trata-se apenas de minha interpretação dessas formas, já que sua razão de ser não é muito clara. Osman parece querer dar uma nova motivação para elas, semelhantemente a Claude Simon e suas obras mais próximas do Nouveau Roman. Para além dessas figuras, a geometria domina de muitos modos a composição textual de Nove, novena, que articula elementos vários do universo de cada narrativa de modo que o leitor tem um quebra-cabeça a resolver.

Nesse sentido, uma das narrativas mais conhecidas desse livro, “O retábulo de Santa Joana Carolina”, ainda intriga os críticos que buscam compreender o encadeamento que o autor construiu para a figura da santa representada. Apesar de ser um dos maiores textos da obra, não há nele uma evolução de enredo como no conto clássico ou na novela. Osman propõe indiretamente ao leitor que tente entender aquela forma narrativa, algo que pode ser feito em comparação também aos outros textos dessa obras. Não se trata de algo fácil (há inclusive teses buscando entender só esse “conto”). “O pássaro transparente” não assusta muito em relação à forma, mas por abrir o livro já prenuncia o desligamento do autor de conceitos já formados sobre personagem, por exemplo. Temos personagens nos contos de Osman, mas nunca temos a caracterização do romance burguês, que explora a psicologia da personagem, sendo que aqui eles se parecem mais com atores.

Em “Um ponto no círculo”, como o título já indica, começa-se a introduzir elementos geométricos variados na formulação do texto, evidenciando a presença do autor ali, ainda que de maneira diferenciada da ficção tradicional. Os pontos de vista distintos sobre a relação entre um homem e uma mulher às vezes parecem se confundir, ainda que marcados cada um por uma forma geométrica (um quadrado e um triângulo). O texto a todo tempo se mostra para o leitor, ainda que nunca se explique, apenas lembre que existe como composição que tenta forçar o raciocínio de quem o lê.

Outros textos como “Pentágono de Hahn” e “Pastoral” também nos estimulam a entender aquela forma e o mundo ali representado. No caso do primeiro texto, a crítica tende a classificá-lo como “embrião de romance” pela sua complexidade quase como que sintetizada em não muitas linhas. O fato é que as questões postas nas narrativas de Nove, novena parecem a todo tempo se revelarem idênticas às dos textos anteriores, como em um ciclo vicioso. Osman Lins se exercita em sua habilidade de escritor, porém ele mesmo busca por vários meios compreender as relações humanas em si, num misto de razão e sentimento.

No exemplar que li do livro, da 4ª edição lançada pela Companhia de Letras, há um posfácio de José Paulo Paes, intitulado “Palavra feita vida”, que também recomendo ao leitor. Com certeza esse texto nos ajuda a repensar o que lemos para, talvez, relermos a obra. Pessoalmente devo dizer que é isso que pretendo fazer assim que puder. Nove, novena é uma obra que nos desafia (desde 1966) a repensar nossa visão sobre literatura, além de propor uma escritura que tece relações com o mundo que não são tão facilmente assimiladas. Fica a sugestão de livro-problema, um problema que merece ser enfrentado e que se manteve para o próprio autor, o que o levou a elaborar sua obra-prima posterior, Avalovara.