Gosto muito das engenhosas estratégias e artifícios de que os escritores, ao longo de séculos de literatura, têm se utilizado para contar histórias. Desde os mais tradicionais até os mais experimentais, dos clássicos aos quase caóticos, não têm faltado ótimos exemplos de como boas histórias podem ser contadas de formas apaixonantes e criativas, sendo R.K. Narayan (1906-2001) um escritor de mão cheia nesse sentido.

Narayan possui uma trajetória bastante interessante. Sendo considerado um dos grandes nomes da literatura indiana em inglês, o autor teve seu primeiro livro publicado em 1935, por conta da ajuda que recebeu de um de seus mais famosos admiradores, Graham Greene. Swami and friends (Swami e amigos, sem tradução) introduz Malgudi, uma cidade fictícia na qual várias de suas histórias se passam. Malgudi é típica em vários aspectos, por congregar elementos e aspectos muito característicos da cultura e da vida cotidiana na Índia. Apesar da falta de incentivo da família e das reviravoltas que enfrentou por suas posições políticas e convicções – influenciadas, inclusive, por sua esposa Rajam -, Narayan conseguiu se fazer conhecido e admirado como um dos grandes nomes da literatura.

É justamente na cidade fictícia que se passa o romance Um tigre para Malgudi, publicado em 1983 e lançado recentemente no Brasil pela editora Guarda-chuva – que do autor lançou também O pintor de letreiros, ambos com tradução de Léa Nachbin. O livro reúne as marcas típicas de Narayan, entre as quais se destacam sua sensibilidade humanista, seu humor singelo e sua capacidade de narrar histórias com uma fluidez invejável, o que nos faz voltar ao ponto abordado no primeiro parágrafo: a curiosa estratégia de Narayan para contar a história de Um tigre para Malgudi.

O recurso de narração de Narayan chama a atenção: embora alterne a narrativa entre primeira e terceira pessoa, o livro é narrado do ponto de vista de um tigre. Quem nos conta a história é justamente o felino, um dos mais populares símbolos da Índia. Isso faz com que a narrativa toda ganhe um colorido especial, uma vez que um posto de vista tão inusitado fez com que o olhar por sobre a realidade de Malgudi se tornasse nada convencional, incidindo sobre pontos que, de outra forma, ficariam obscurecidos.

A vida do tigre é a base temporal em relação à qual a trama se orienta. De sua infância até o presente se desenham também as mudanças de Malgudi e, por consequência arquetípica, também a própria Índia. Narayan sabe muito bem se utilizar do estranhamento do tigre em relação à sociedade dos homens que o cerca para pôr em relevo as contradições que nela existem.

A infância do tigre – o passado da Índia – se desenrola nos tempos em que as populações vivam predominantemente no campo, quando a selva ainda constituía o domínio primordial. O crescimento do narrador foi concomitante à expansão das aldeias, o que resultou numa incursão maior dos homens nas florestas e, ao mesmo tempo, do tigre nos cercados de ovelhas – presas fáceis para sua voracidade. A vida adulta coincidiu com uma maior urbanização e com a penetração estrangeira, evidenciada nos choques entre as práticas tradicionais da religião e da cultura indiana e modernização, por exemplo.

O tigre de Malgudi está ali todo o tempo, como uma sombra na História, se movendo entre os meandros dos grandes acontecimentos, conduzido habilmente pela pena de Narayan. Devido às suas caçadas nos rebanhos pastoris, o tigre chamou a atenção do Capitão, o proprietário de um circo que o fez sentir diretamente as glórias e as dores da civilização dos homens. Após temporadas e temporadas de shows, o tigre entrou para o mundo do cinema, causou furor, se enfureceu, fugiu e veio a se encontrar com seu mestre swamiji, um asceta que se retirou da dinâmica corrente do mundo para dedicar-se à busca da realização espiritual.

As pegadas individuais do tigre revelam uma jornada social e histórica. Narayan satiriza a burocracia governamental, a sedenta busca por dinheiro e os exageros da indústria cinematográfica. Por outro lado, mostra com solidariedade a vida simples das pessoas comuns e exalta a transcendentalidade dos ascetas discípulos de Sidarta. Além disso, ainda cria personagens caricatos e típicos, transbordando daquele apuro de retrato, a um tempo ficcionalmente literários e profundamente reais.

Narayan, a julgar por Um tigre para Malgudi e pelos admiradores que possui, é um autor cuja obra tem potencial para agradar tanto a leitores mais clássicos quanto leitores de ocasião, àqueles que buscam boas histórias e àqueles que buscam traduções literárias da realidade viva, abundantes de percepção histórica e social. Todos esses motivos são mais que suficientes para que esperemos – e sugiramos, e cobremos – mais traduções e publicações do autor para o português.