Em O leopardo, de Tomasi di Lampedusa, é famoso o momento em que Tancredi, símbolo da juventude nobre siciliana, opina ao príncipe de Salina sobre a possível reunificação da Itália e a deposição dos Bourbon: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Essa ideia também está em um plano de fundo de uma obra muito distante de Lampedusa, Esaú e Jacó (1904), penúltimo romance de Machado de Assis. Digo que é “um plano de fundo” porque há vários. Ainda que sejamos sempre exaltados a ler outras obras machadianas, como Memórias Póstumas e Dom Casmurro, são poucos os escritos desse autor que chegam à complexidade de Esaú e Jacó.

Aparentemente, temos aqui apenas a história de dois gêmeos, Pedro e Paulo, que desde seu nascimento são motivo de felicidade e apreensão para seus pais e outras figuras da alta sociedade carioca do Segundo Reinado. Logo após dar à luz, Natividade busca descobrir qual seria o destino de suas crianças por uma adivinha muito falada nos mais diversos círculos do Rio de Janeiro. Apesar da revelação de que seus filhos haveriam de viver “coisas futuras”, provavelmente grandiosas, ela se aflige, bem como seu marido, Santos, pela previsão de que os gêmeos brigariam entre si assim como brigaram na barriga da mãe. A partir daí, acompanhamos as trajetórias de vida dos dois até a vida adulta, quando se encontram apaixonados pela mesma mulher, Flora, filha de Batista, amigo da família.

O fato é que esse enredo de certo modo banal, digno do romance burguês do século XIX, serve somente como um argumento de Machado para explorar uma série de questões que lhe eram pertinentes. Toda essa história dos gêmeos se passa em um período muito específico da história do Brasil, na transição entre o Segundo Reinado e a Primeira República. Natividade, Santos e seus amigos, sendo integrantes da alta sociedade carioca, estão muito próximos da nobreza brasileira e dos políticos de sua época, o que motiva desde cedo o interesse de Pedro e Paulo pelo destino do país em uma época conturbada.

É natural se imaginar que tinham ideias contrárias nesse campo: o primeiro era monarquista e o segundo, republicano. Fica claro a todo tempo como conservadores e liberais no cenário imperial brasileiro parecem não diferir muito entre si. A república é proclamada após certo tempo, porém não é muita coisa que muda. As pessoas no poder continuam sendo as mesmas. Apenas é mudado o nome da Confeitaria do Império, local constantemente referenciado no romance. Em plena belle époque brasileira, é interessante ver como Machado parece ver tudo como mera continuação do período imperial e até mesmo do colonial se aderirmos às visões de Paulo.

No meio disso tudo, também há o conselheiro Aires, que é apresentado desde a advertência ao início do romance como seu autor. Essa figura ficcional teria escrito esse volume como encerramento de sua série de memórias, mas o fato é que o autor também ficcional da advertência ressalta que o último volume parece ser uma narrativa à parte, não-integrante do Memorial. O que temos, é claro, é Esaú e Jacó, livro no qual o conselheiro Aires tem papel fundamental como figura mais velha, diplomata aposentado, o espirituoso amigo de Santos e Batista que tentará ajudar os gêmeos a lidar com suas intrigas pessoais.

Além disso, é nítido também que Aires é uma espécie de alter ego de Machado de Assis mesmo, não só pelo fato de ser o “autor” de Esaú e Jacó, mas também por encarnar em si, como narrador, todos os pensamentos acerca da literatura do escritor carioca nos vários trechos e capítulos mínimos. Em prefácio da recentíssima edição da Penguin/Companhia das Letras, Hélio Guimarães trabalha com a ideia de que esse romance é uma espécie de teoria da composição ficcional de Machado já maduro, mas acredito ser difícil denominá-lo “teoria”, sendo que talvez seja mais próximo da autoficção moderna do que da hipótese científica.

De qualquer modo, percebe-se que Esaú e Jacó traz em si questões várias que estão por toda a obra machadiana e chegam à tona para a reflexão justamente na forma de ficção, uma ótima maneira de Machado apresentar suas ideias críticas sobre a literatura e também a sociedade no período finissecular.