Eu realmente tenho que dedicar mais tempo e leituras para a literatura brasileira. Não estou me referindo necessariamente aos clássicos de nossas letras, mas à literatura contemporânea. Do pouco que conheço gosto bastante de Bernardo Carvalho e Carol Bensimon, mas não vou muito além disso. Até compro ou leio sobre alguns dos livros dos quais mais se fala por aí afora, mas a verdade é que me arrisco pouco nesse terreno.

Para reforçar a urgência da disposição do meu tempo para livros nacionais foi que a leitura de O que deu para fazer em matéria de história de amor, da escritora Elvira Vigna, veio. É um daqueles livros em que transparece maturidade e que, ciente das possibilidades e limitações da literatura e da narrativa ficcional, consegue tirar ricas explorações do ato de contar histórias.

É um tanto difícil contar histórias de amor. Não porque elas sejam escassas, mas sim porque elas são muitíssimo abundantes. Tanto já foi dito, e de tantas maneiras diferentes, que o desafio é explorar inflexões, temas, arranjos e subjetividades que tragam algo de novo ou que consigam ser atrativos o suficiente para fugir da armadilha dos clichês. Adentrar nessa seara, naquela dos relacionamentos, dos encontros e desencontros, enlaces e desenlaces, é viver sob a sombra dessa vasta produção e da ampla gama de imagens, visões e retratos do amor. Elvira Vigna consegue se manter numa trilha sólida sem recorrer nem ao clichê sentimentaloide nem a um fatalismo frio que insiste em grassar certas visões do amor.

A narradora do livro tem um caso com Roger, mas a história não é focada nesse relacionamento. Ou pelo menos não somente nesse. O histórico da família de Roger é um dos fios que entremeia essa relação, e uma das tramas que insiste em se enredar no enlace amoroso dos dois, ele próprio cheio de complicações.

O passado familiar de Roger encontra-se orbitando em torno da história de Arno e Rose, seus pais, e Gunther, filho do primeiro casamento de seu avô, pai também de Arno. Os eventos que constituíram o relacionamento de Arno e Rose, bem como suas vidas e a vida de Roger são de uma complexidade tremenda, e envolvem muito mais do que discussões e pequenos traumas infantis, são uma espécie de estigma sob o qual caminha Roger em seus próprios relacionamentos.

A narradora percebe os ecos do passado reverberando em torno de seu relacionamento com Roger, e fez disso a matéria-prima do seu relato. Boa parte do livro se dá na volta ao passado, à árvore genealógica de Roger, buscando na complicada e traumática urdidura familiar na qual ele cresceu signos e razões que ajudem a compreender os tortuosos caminhos que o casal do presente trilha.

A imagem de amor e de relações afetivas presente no livro é construída aos poucos, na cadência ora mais suave, ora mais atribulada em que os vários relacionamentos se desenrolam. Há pouco espaço para melancolias, embora haja um caráter um tanto confuso em torno das incertezas dos relacionamentos afetivos. A sucessão de eventos que vai amarrando concomitantemente as duas tramas (a de Rose e Arno e a da narradora e de Roger) não permite que os personagens se entreguem às depressões e às frustrações, sempre há alguma situação a mais para acontecer, uma certeza tácita de que algo a mais, positivo ou negativo, virá. A continuidade (ou inconclusão), portanto, desempenha o papel no curso dos relacionamentos, tanto para o bem quanto para o mal.

Dotada de uma trama bem amarrada, O que deu para fazer em matéria de história de amor parece conter os elementos primordiais para uma ótima história. Porém, o que faz com que ela alcance notas literárias mais altas é a narrativa de Elvira Vigna. Ela é expansiva e ao mesmo tempo bem ponderada. Sem perder a mão ao construir uma frase, ela consegue arrancar expressividade e vivacidade das palavras sem perder aquele pulso necessário para que a frase toda não desmorone. Períodos curtos se alternam com longos, muitas vezes entrecortados por pensamentos ou considerações, mas não sem que tenham sido cuidadosamente pesados, para testar sua própria sustentação.

Se trata de uma narrativa em que podemos perceber as idiossincrasias da própria narradora. Não parece nem que ela seja artificial, nem que ela seja por demais geral, isto é, passível de ser dita por qualquer boca. Ela possui uma identidade, sutil mas presente.

O mesmo pode ser dito dos personagens e da caracterização da época em que se passa a trama de Arno e Rose e a de Roger e da narradora. A escolha do que narrar e de que características atribuir aos personagens de acordo com a realidade em que viviam exprime sensibilidade da parte da escritora, que soube perceber em Rose a sexualidade à flor da pele em contraste com a repressividade dos anos sombrios de nosso passado. No caso de Roger e da narradora, aquela sensação de vazio e inércia existencial tomam o cenário e ocupam – pela interposição da ausência – um lugar nesse ínterim. O conflito entre Gunther e Arno, em outro exemplo, é construído por meio dos detalhes pontilhados em suas personas pelas descrições precisas e pela evocação de situações que lhes desenham o caráter e suas feições psicológicas.

Por todas essas razões – e também pela sinceridade meio irônica do título – é que o livro de Vigna consegue conduzir o leitor e lhe presentear com uma história bem contada, que alterna uma metódica construção de trama com a expansiva construção da narrativa. É possível apreciar o livro por essas duas razões separadamente, mas, em minha opinião, é precisamente a junção bem orquestrada das duas que faz de O que deu para fazer em matéria de história de amor um livro delicioso e ricamente escrito.