Aos 19 anos de idade, quando a maioria de nós está se embebedando na faculdade ou fora dela, um jovem português de longo nome, Benigno José Mira de Almeida Faria (1943), mais conhecido apenas por Almeida Faria, lançava sua primeira obra literária, Rumor branco (1962). Não quero dizer com isso que ele não bebesse. É bem possível que o fizesse, mas desse dado biográfico nada sei. O fato é que, enquanto frequentava cursos diversos na Universidade de Lisboa, esse jovem elaborou uma narrativa de peso, razão de alguma polêmica no meio literário de Portugal à época de seu lançamento.

Apesar de enfatizar a juventude de Almeida Faria, não desejo utilizá-la como justificativa para uma valoração suprema de sua obra primeira. Talvez seja interessante lembrar de sua tenra idade apenas pelo contexto histórico em que esse gajo estava inserido, os anos finais (talvez os mais deprimentes) do regime salazarista. Imagino que se pensa com facilidade que um jovem nos anos 60 em meio a uma sociedade autoritária estava marchando pelas ruas em busca de liberdade. Novamente, não saberia dizer se Almeida Faria fez isso, além de duvidar muito que tenha o feito, já que António Salazar teria mandado imediatamente cavalos da polícia para cima do gajo. Apesar disso, imagino que esse autor tinha suas pretensões “revolucionárias”. Vê-se isso por Rumor branco. Vê-se pelo trecho seguinte, integrante do Fragmento I da obra:

voz desintegrada e aflita sombra apenas de arquétipo perfeito. diz Pedro: tu Regina sentes o teu corpo quer dizer para além de dor ou mal-estar se estás doente mas eu sinto-me a mim mesmo alucinadamente foi só por isso que vim hoje ia no autocarro para a Baixa chovia sedeusadava havia nevoeiro casas ruas gente tudo era cinzento e pensei que a terra estava liquidada e os homens se arrastavam alienados do real que os ignora e se vingam ignorando e vi que era vil a vida assim que era vil a minha vida e foi nesse exacto instante que o meu corpo se me tornou presente.

 

Percebe-se logo que não se trata de uma narrativa ao gosto do burguês do século XIX. Almeida Faria é transgressor na forma e no conteúdo, de modo que não conseguimos mais distinguir um do outro (sendo que talvez a distinção realmente não exista). Daniel João, nosso possível protagonista, quem sabe até narrador, surge como essa “voz desintegrada” logo no Fragmento I desta obra composta por sete fragmentos no total. Além de desintegrada, também é “aflita sombra”, longe da perfeição, mero pedaço de uma formação impedida de ser completada.

Em Rumor branco temos de início uma voz que quer se projetar no meio da multidão, uma voz voltada para si, uma voz burguesa como tantas outras. Diante da constatação de sua falta de diferença em relação aos outros, o aprendizado físico se faz necessário: se é alguém quando se é corpo em meio a outros, quando se nota que há uma realidade fora de si. A questão aí é que a realidade é de alienados. Esse paradoxo interessante posto pelo narrador, juntamente com a confusão de vozes – Pedro? Regina? Daniel João? o próprio narrador? –, apenas nos motiva a tratar essas expressões individuais em igualdade. Não há mais elevação de um entre outros, como num típico romance de formação, mas observação de um rumor contínuo do qual todos fazem parte.

Fala-se muito de “literatura engajada” ou de qualquer outra arte com aspirações políticas ainda hoje. Sempre lembro de exclamações de gente variada sobre como o artista brasileiro permanece apático diante de sua realidade. O que realmente penso é que sempre devemos avaliar se o outro não expressa seu descontentamento de uma maneira diferente do esperado. Na década de 1960, falava-se muito de “literatura engajada”, uma literatura que promoveria uma consciência revolucionária. Em que revolução se pensava? Difícil dizer. O pensamento de esquerda é mais do que diverso. Na época, o marxismo-leninismo era o pensamento predominante por razões variadas. O fato é que elas eram naturalmente determinantes na conceituação do que seria “político” na arte. Ainda são, é claro. A diferença é que talvez a esquerda da época não estivesse tão consciente de todas as derivações de seu pensamento.

Digo tudo isso porque quero tratar de Almeida Faria como um escritor libertário. Sem forçar a barra, por favor; apenas quero que pensem em Rumor branco, não na figura do escritor em si. Temos nesse livro quase que um Bildungsroman de Daniel João (se pensarmos nesse conceito de maneira mais ampla). Trata-se sim da formação de uma voz no mundo, apesar de ser uma única voz ao mesmo tempo.

Essa palavra, “voz”, foi largamente utilizada pela crítica que buscava entender esse novo escritor. Grandes estudiosos da cultura portuguesa como Cleonice Berardinelli e Eduardo Lourenço a deram especial ênfase. Destaco também o termo “formação” porque noto que construímos essa voz de Daniel João ao longo da obra, não a apreendemos em sua completude de início, como se estivesse lá, pronta, apenas aguardando o leitor. Forma-se a voz, mas é através do grito, através da fuga da alienação do real que o indivíduo bem como a coletividade livre surge. Rumor branco, narrativa curta e complexa, aparece aí como um interessante paradigma para se pensar a ficção moderna e contemporânea.