“Seu sonho (confessável?) seria transportar, para uma sociedade socialista, certos encantos (não digo: valores) da arte de viver burguesa (eles existem – existiam alguns): é o que ele chama de contratempo. Opõe-se a esse sonho o espectro da Totalidade, que exige que o fato burguês seja condenado em bloco, e que toda escapada do Significante seja punida como um passeio do qual se traz a mácula. Não seria possível gozar da cultura burguesa (deformada), como de um exotismo?”[1]
Roland Barthes, em seus fragmentos autobiográficos (Barthes par lui-même, 1975), parte da coleção “L’écrivain par lui-même” (“O escritor por si mesmo”), demonstra a todo momento que, apesar de estar falando de si (até mesmo na 3ª pessoa), também trata da arte, do pensamento humano e, consequentemente, de todos nós. É claro que não deixamos de ver o mundo nesse livro através dos olhos do teórico francês; Barthes faz questão de nos levar consigo para sua “aventura da escritura”. Ainda que o espectro barthesiano nos remeta inevitavelmente ao pós-estruturalismo francês, acredito que muitas ideias dispostas ao longo de sua “autobiografia crítica” podem ser consideradas até mesmo pelos que normalmente detratam suas posições teóricas. A passagem citada acima é um desses casos.
Diariamente, na televisão, no jornal, na publicidade e até nos informes do condomínio, nos vemos diante de estímulos mil para que se leia mais, para que nos tornemos um cidadão melhor através da leitura. Parece que só assim nos tornaremos pessoas realmente conscientes de si, se seguirmos essa lógica segregacionista. Ela segrega aquele que não lê, ao ignorar suas razões: você não tem acesso ao livro, logo você não pensa, logo você não é, o que nos leva surpreendentemente a Descartes, ainda que a um Descartes deformado. Aprenda a cultura dos livros, domine a linguagem estabelecida nos livros e só assim você será um ser humano. Percebem o “fascismo” da coisa? Será essa cultura burguesa, que quer se impor acima de todas pelo livro, inacessível à maioria analfabeta?
De qualquer modo, no fragmento acima, intitulado “O contratempo”, Barthes nos lembra de certos “encantos” da cultura burguesa que parecem ser ignorados ou deliberadamente excluídos do programa revolucionário socialista. Quando li esse trecho, imediatamente me lembrei do paradoxo barthesiano (por ele chamado de “contratempo”): aquele que defende a “revolução da linguagem” pela literatura e para a sociedade, que não deixa de perceber o fascismo da língua (em Aula), não consegue se separar da arte da qual pensa que deveria se afastar. É notável que Barthes fez questão de nos fornecer revisões de obras de Balzac, Sade e até mesmo Michelet ao longo de sua carreira, sempre buscando evidenciar o caráter burguês dos críticos anteriores e também da sociedade na qual os autores estudados se inseriam. O que motiva as pessoas a estudar artistas burgueses e até mesmo a apreciá-los, apesar de elas desejarem mudanças estruturais na sociedade? Por que esse “espectro da Totalidade” parece nos forçar a nos sentirmos culpados?
O “exotismo” apontado por Barthes é uma saída. Uma saída fácil demais, no entanto. Ainda que nos sintamos próximos de uma personagem balzaquiana ou apreciemos bossa nova, poderíamos alegar distanciamento, o mesmo de um cientista diante do objeto de estudo. A teoria literária a todo tempo se afirma sob esse julgamento: estudo (na 1ª pessoa) tal obra, porém minha análise almeja ser objetiva. É óbvio que o mito da “ciência neutra” parece cada vez menos verdadeiro até mesmo como mito, o que nos faz duvidar que um crítico de arte seja “objetivo” ao afirmar, por exemplo, que James Joyce é um expoente da modernidade e não outro autor. Difícil se determinar algo assim de maneira distanciada. O fato é que, a todo momento em que alguém se posiciona como detentor de alguma opinião sobre a cultura, ele parece querer mostrar que sua posição é válida. Se muitos leitores concordarem com sua opinião, estaremos convictos de que ele estava certo. Ainda assim, permanece a dúvida: quem são esses leitores? Por que parecem querer determinar o caráter desse conhecimento aprovado por eles?
A cultura burguesa parece ser exatamente a cultura, ela inteira. Poderíamos dizer a Barthes que, numa sociedade socialista hipotética, não haveria mais cultura no sentido em que conhecemos. O que conhecemos por cultura, o que na nossa língua (fascista) chamamos geralmente de “cultura” é algo definido por aqueles que têm acesso a ela, ainda que busquemos desintegrar qualquer cânone ou criar uma “arte revolucionária”, caso das vanguardas da primeira metade do século XX. Não falo como “especialista”; apenas tento ver o problema por um panorama. A negação da cultura burguesa dentro da Totalidade de um programa revolucionário não me faz sentido, já que qualquer cultura será criada a partir da base já existente. É conhecido o “erro” dos realistas soviéticos, que se utilizaram de formas romanescas burguesas para tratar de seus temas socialistas. Seu “erro” é justificável: a forma revolucionária só poderá ser entendida pelos questionadores da cultura burguesa, que são justamente aqueles que foram instruídos para compreendê-la dentro dos meios burgueses. A poesia de Maiakóvski só se torna “revolucionária” se a compararmos com a poesia “reacionária”.
Não digo tudo isso para desvalorizar a obra dos modernistas ou de qualquer um que queira dar novos rumos às artes, rumos que busquem criticar a sociedade em seu estado atual. Ainda assim, o questionamento permanece na afirmação barthesiana acerca da hipótese socialista. Como poderia existir “exotismo” em uma cultura burguesa se não conseguiríamos mais apreendê-la nos mesmos termos? Ela não se tornaria inacessível para que outras formas (e convenções inclusive) surjam, formando-se, assim, inevitavelmente outro significado para cultura? Ou ainda conseguiríamos entender a cultura burguesa, mas somente “deformada”, como Barthes diz? São perguntas sem respostas possíveis hoje. Apesar de desejarmos distanciamento, a cultura, nossa próxima, que se mantém como formadora do cidadão e deformadora do marginal, desse outro para qual é dedicado o poema (veja você) “Para o livro de literatura de segundo grau”, de Hans Magnus Enzensberger:
Não leias odes, meu filho, lê os horários
(dos trens, dos ônibus, dos aviões):
são mais exatos. Abre os mapas náuticos
antes que seja tarde demais. Sê vigilante, não cantes.
Chegará o dia em que eles, de novo, pregarão listas
no portão e desenharão marcas no peito daqueles que dizem
não. Aprende a ir incógnito, aprende mais do que eu:
a mudar de bairro, de passaporte, de rosto.
Entende da pequena traição,
da salvação suja de todos os dias. Úteis
são as encíclicas para se fazer fogo,
e os manifestos: para a manteiga e sal
dos indefesos. É preciso raiva e paciência
para se soprar nos pulmões do poder
o fino pó mortal, moído
por aqueles, que aprenderam muito,
que são exatos, por ti.[2]