Ainda no prólogo, intitulado “O pior aniversário de todos os tempos”, Caitlin Moran aponta sua maior inspiração para o título do livro Como ser mulher: “Quando Simone de Beauvoir disse: ‘Ninguém nasce mulher; torna-se mulher’, ela não sabia nem a metade.”. E é isso que a autora passa a demonstrar, a partir de um ponto de vista muito pessoal e pouco acadêmico: que nascer com o duplo cromossomo XX não significa intuir prontamente todas as implicações do que é ser mulher.
Eu já tinha encarado o livro de Moran algumas vezes na livraria (a capa é vistosa: o rosa com verde chama a atenção, bem como o “rasgo” iconoclasta, que revela uma ilustração clássica de uma operária, supostamente escondida atrás de uma pin-up, da qual restou apenas a porção dos peitos), mas nunca o folheara – ou lera suas orelhas. 1 Sabia apenas que era um dos primeiros livros publicados pela Editora Paralela, selo da Companhia das Letras voltado a títulos mais comerciais e de entretenimento.
Não consigo dizer exatamente o que me levou a pegar o livro e dizer “vou resenhar!”. Talvez tenha sido um pouco de curiosidade editorial: eu gosto de conhecer o catálogo do maior número de editoras possível – o que não significa que eu não tenha preferências muito bem definidas. 2. Talvez tenha sido parte da minha crescente vontade de ler mais mulheres – vide o desafio “Autoras de literatura contemporânea brasileira”, ainda em vigor. 3 Talvez tenha sido a promessa de diversão – “Um divertido manifesto feminino” – exposta no alto da capa: “estou farto de livro chato” meio que virou meu lema nos últimos tempos – mais ou menos da mesma forma que, para um amigo, “a vida é curta demais para ler prosa poética”.
Só sei que, tão logo comecei a leitura, percebi que não a largaria até que a terminasse. Sim, o livro é divertido. Ri alto, não poucas vezes – tantas que minha tia favorita, a passeio em Curitiba, ficou doidinha pra ler também. Dei escândalo, inclusive, no ônibus: se já não estava nem aí para o que podiam pensar do título e da capa, também não me importava se estava gargalhando entre estranhos. 4
Por os temas abordados na obra partirem da experiência pessoal da autora, o escopo da obra é bastante limitado. Se ela não propõe um viés acadêmico, é porque está mais a fim de conversar – sim, o tom é de um papo descontraído, então “conversar” é um bom verbo – sobre tópicos comuns ao cotidiano das mulheres: 5 menstruação, casamento, moda 6 (a íntima também), filhos, aborto, depilação, clubes de strip tease 7 (e a diferença essencial 8 entre eles e os clubes de burlesco), a importância cultural da Lady Gaga (o capítulo 14, “Modelos de comportamento e o que fazer com eles”, seria o que eu mais recomendaria para uma leitura descompromissada na livraria), sexismo no ambiente de trabalho e a descoberta do machismo dissimulado (caro leitor, se você não estiver contente com o trechinho a seguir, recomendo a leitura do trecho na nota de rodapé 9): 9
Hoje em dia, o machismo se parece um pouco com Meryl Streep em um filme novo: às vezes você não reconhece de cara. Podem se passar vinte minutos e você está lá, divertindo-se com os dinossauros, as lutas espaciais e os soldados confederados que sentem saudade de casa, antes de se dar conta: “Ai, meu Deus – embaixo daquela peruca! É a MERYL”.
Apesar do título – e de capítulos como o primeiro, “Começo a sangrar”, com os quais, o leitor masculino tem maior dificuldade de se relacionar –, o livro não se destina exclusivamente às mulheres. A popularidade da obra, best-seller em diversos países, é tamanha que despertou o interesse de várias blogueiras feministas brasileiras, que o discutiram, seja para apontar as falhas de Moran 10 seja para enfatizar os seus méritos, como o de tirar do senso comum uma visão errônea 11 do que significa ser feminista. O interessante é que, ainda que o trecho a seguir seja facilmente encontrado em muitos desses blogs, o último parágrafo sempre é omitido:
O que VOU pedir que vocês falem, no entanto, é dizer: “Sou feminista”. De preferência, gostaria que vocês ficassem em pé em cima de uma cadeira e berrassem: “SOU FEMINISTA” – porque eu acho que tudo fica muito mais emocionante se você sobe em uma cadeira.
É realmente muito importante que você diga essas palavras em voz alta. “SOU FEMINISTA.” Se você acha que não consegue – nem mesmo com os pés no chão –, eu ficaria preocupada. Essa é provavelmente uma das coisas mais importantes que uma mulher tem a dizer na vida, além de “Eu te amo”, “É menino ou menina?” e “Não! Eu mudei de ideia! Não corte a minha franja!”.
Diga. DIGA! DIGA AGORA! Porque, se você não for capaz, é como se estivesse se inclinando e dizendo: “Chute a minha bunda e leve o meu voto, por favor, patriarcado”.
E não ache que você não deve estar em cima daquela cadeira berrando “EU SOU FEMINISTA!” se for menino. Um homem feminista é um dos produtos finais mais gloriosos da evolução. Um homem feminista COM TODA A CERTEZA deveria estar em cima de uma cadeira – para que nós, moças, possamos brindar a você, com champanhe, antes de cobiçar loucamente seu corpo. E quem sabe conseguir fazer com que você troque aquela lâmpada já que está aí em cima mesmo. Não podemos fazer isso sozinhas. Há uma teia de aranha enorme no suporte da lâmpada.
Talvez isso se deva às piadinhas – ok, é meio clichê falar em “trocar lâmpadas” e “teias de aranha”, mas confesso que achei o trecho divertido. De qualquer forma, a omissão generalizada soou mais como se homens feministas por aí não existissem – ou como se a possibilidade de eles lerem tais blogs sequer deveria ser cogitada. Uma dica: moças, vocês estão sendo machistas. E omitindo uma parte importante do que há de tão transformador no livro de Moran: ela mesmo admite que aprendeu a ser ainda mais feminista com o marido.
Mas voltemos um instante e não deixemos o assunto “piadinhas” morrer por aqui. Em meio a tantos temas abordados 12 pela autora, destaco o tópico do humor. Se claramente a autora não se informou muito bem sobre antigas descobertas científicas que tiveram participação feminina, creio que posso desconfiar menos de quando ela entra no tópico da “primeira mulher engraçada que existiu”. 13 Sua reflexão sobre o humor – sendo este algo que desprezei por muito tempo, não sabendo que a vida é uma intensa mistura entre tragédia e comédia 14 – me fez pensar em como meu desprezo provavelmente se devia ao que sempre predominou na nossa telinha: a repetição esquemática dos sábados à noite, o “politicamente incorreto” que só repisa velhos preconceitos etc. Tanta repetição e tanta velhice talvez estejam intimamente ligadas a quem produz esse humor: para citar um poeta de quem tenho saudade, “as lesmas são sempre as mesmas”. É meio que pedir demais inteligência e renovação do patriarcado.
O maior espaço dado a outros tipo de comédia 15 nos permite ter uma variedade bem maior de mulheres fazendo humor. E não é aquela coisa engraçadinha-mas-fofinha das gêmeas Olsen (“vai ser sem graça, desgraçada“): temos filmes como Operação: Madrinha de Casamento, seriados como 30 Rock, canais do YouTube que dizem o que uma mulher quer no lugar de fazer sobremesa para o marido, colunistas do Posfácio fazendo poemas no Tumblr. Plmdds, temos uma Tatá Werneck, algo que nem a Globo 16 (e um autor de novelas que leva muito a sério as falas que escreve) conseguiu estragar! Basta vê-la sendo entrevistada por Gabi (ela fala um pouco sobre mulheres e humor a partir do minuto 9:00).
E agora temos também Caitlin Moran. Como disse Elvira Vigna recentemente, “eu adoro o século 21”. Pena que isso não coube no tweet.
- Ok, isso soou de um jeito estranho. ↩
- Se no começo não dei muita bola para o que essa editora lançava, aos poucos fui conferindo alguns dos seus livros: O atlas do amor e Adeus, por enquanto, de Laurie Frankel; Toda sua, de Silvia Day; e A idade dos milagres, de Karen Thompson Walker. Quer saber? Se uma de suas propostas é de uma literatura de entretenimento, creio que o objetivo foi alcançado; fui entretido e não senti estúpido no processo – um dos meus maiores medos em se tratando de entretenimento. ↩
- Continuando a nota de rodapé anterior: não sei se você percebeu, mas os cinco livros que li da editora foram escritos por mulheres. Aliás, 20 dos 30 livros listados na página inicial do site dela são de escritoras. Isso parece também fazer parte do projeto editorial, ainda que não esteja explícito em seu Institucional. Aliás, no dia internacional da mulher, ao divulgar no Facebook uma imagem brincadeira (daquelas que você compartilha e marca um amigo em cada um dos adjetivos), a editora publicou que ela “é praticamente 90% feita por mulheres: suas autoras, sua equipe (que faz com que bons livros sejam publicados) e suas leitoras.”. Parte do meu interesse maior por autoras deve-se, principalmente, à menor taxa do fator “mimimi o romance acabou mimimi”. Elas simplesmente vão lá e usam sua criatividade sem dó nem piedade: construindo uma família composta por três mulheres totalmente diferentes, pós-graduandas que resolvem se dividir na tarefa de cuidar do bebê de uma delas (O atlas do amor); inventando um gênio da informática que cria logaritmos de computador que rastreiam padrões na comunicação virtual de forma a permitir conversas com pessoas já mortas (Adeus, por enquanto); reinventando a história sadomasô que conquistou o mundo, de modo a corrigir os erros crassos do best-seller mais famoso – o livro dá maior poder à protagonista feminina, que, afinal, representa a maior parcela do público interessado (Toda sua); e levando às últimas consequências uma extensa pesquisa científica acerca do que ocorreria se a velocidade de rotação da Terra diminuísse – ficção científica boa, humana e bem embasada (A idade dos milagres). ↩
- Eu bem que poderia ter me segurando: estava a caminha de uma mostra de filmes do Almodóvar e sabia que daria umas boas risadas com Mulheres à beira de um ataque de nervos. Foi um dia péssimo para as inimigas, mas um dia excelente para o desenvolvimento das rugas faciais. ↩
- “Mas aqueles probleminhas menores, mais idiotas e mais óbvios do dia a dia que ser mulher acarreta são, em diversos aspectos, igualmente prejudiciais à paz de espírito de uma mulher. É a teoria das janelas quebradas transferida para a desigualdade feminina: se uma única janela quebrada em um prédio vazio é ignorada e não é consertada, a tendência é que vândalos quebrem mais algumas janelas. No final, podem invadir o prédio e tacar fogo ou ocupar o imóvel.” ↩
- “Se vou gastar quinhentas libras em um par de sapatos de marca, vai ter que ser um que me permita a) dançar ‘Bad Romance’ e b) fugir correndo de um assassino, caso algum resolva me perseguir. É o mínimo que peço para os meus calçados. Que eu seja capaz de dançar e não seja assassinada por causa deles.” ↩
- “Em 2010, a Islândia – com sua primeira-ministra lésbica e seu parlamento que é 50% feminino – tornou-se o primeiro país do mundo a proibir clubes de strip-tease por motivos femininos, não religiosos. ‘Acho que os homens da Islândia vão ter que se acostumar com a ideia de que as mulheres não estão à venda’, disse Gudrun Jonsdottir, que fez campanha para a mudança na lei.” ↩
- “Sabe qual é o teste de acidez final dos clubes de strip-tease? Homens gays não iriam ao Spearmint Rhino nem mortos – mas em um clube de burlesco não dá para se mexer por causa deles. Você sempre é capaz de detectar se um lugar é saudável do ponto de vista cultural para mulheres quando os gays começam a frequentá-lo. Eles gostam de purpurina, imundície e diversão – e não de um gatilho masturbatório fabricado com – e isso agora eu posso dizer com propriedade – espumante da casa ácido demais.” ↩
- Hoje em dia, uma infinidade de atitudes desprezíveis para com as mulheres se tornaram difusas, indistintas ou quase totalmente veladas. Lutar contra elas parece ser a mesma coisa que tentar acabar com o cheiro de umidade e de mofo do corredor usando uma faquinha de sobremesa. Porque – assim como o racismo, o antissemitismo e a homofobia – o machismo moderno se transformou em algo traiçoeiro. Dissimulado. Codificado. Da mesma maneira que um racista que não saiu do armário jamais sonharia em dizer “crioulo” abertamente, mas poderia fazer uma referência pontual de que uma pessoa negra tem um ritmo próprio ou gosta de frango frito, um misógino que não saiu do armário tem uma ampla seleção de palavras, comentários, frases e atitudes que pode empregar para menosprezar uma mulher com sutileza e deixá-la desconcertada, mas sem ficar imediatamente aparente que é isso que ele está de fato fazendo. //Tome como exemplo uma pequena discussão no escritório. Houve uma divergência de opinião a respeito de um projeto. Um colega, homem, não aceitou bem o fato e saiu pisando firme. Quando ele volta, coloca um pacote de absorvente na sua mesa. // “Como você anda emotiva, achei que estava precisando disto”, ele diz, com um sorriso que lembra o comediante Jimmy Carr. Algumas pessoas dão risadinhas. // O que você pode fazer? Obviamente, se tivesse mais recursos, seria capaz de enfiar a mão na gaveta da mesa de trabalho, tirar dali um par de testículos e colocá-los em cima da mesa, dizendo: “E levando em conta a falta de fibra que você demonstrou na última conversa, achei que estava precisando disto aqui”. Mas, infelizmente, nem a mulher mais preparada do mundo teria um par de bolas de borracha à mão. ↩
- Tipo a sua má educação no twitter com relação à falta de representação negra no seriado Girls; ou seu total desconhecimento sobre descobertas científicas feitas por mulheres, devidamente “apagadas” da história, que a levou a dizer que o sexo feminino nada havia feito de relevante até há pouco tempo. ↩
- Para saber mais sobre isso, vale checar um vídeo do canal Feminist Frequency, intitulado “The Straw Feminist”. ↩
- Insisto em indicar fortemente a leitura do capítulo 14, em que ela “explica” Lady Gaga. ↩
- A saber, Dorothy Parker. ↩
- Descobri Woody Allen tarde demais. ↩
- Bendita seja a internet. ↩
- Vi o Adnet no Fantástico: ruína. ↩
Beleza de resenha. Esse vai pular algumas posições na lista de próximas leituras.
Valeu, rapaz! Confere sim, é mó legal!